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O AI-5 para leigos. Por Rinaldo Ribeiro de Almeida, Promotor de Justiça

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A Tirania é um risco? Quase 36 anos separam as datas abaixo, e nem todos perceberam os riscos de legislações e soluções autoritárias.

Dia 25 de abril de 1984: a Proposta de Emenda Constitucional “Dante de Oliveira” é rejeitada pela Câmara dos Deputados, apesar da mobilização popular (eu mesmo, criança pequena, estive num desses comícios, e até ganhei autógrafo da Maitê Proença, se a memória não me trai.) Reinstaurar eleições diretas para Presidente da República  era o objetivo direto, e anular Legislações Autoritárias, objetivo indireto.

Dia 19 de abril de 2020: em diversas cidades brasileiras, populares protestam em frente a quartéis. Intervenção Militar e AI-5 são motes do protesto. O Presidente Bolsonaro comparece a um desses eventos em Brasília.

Mas, o que é o AI-5? O Ato Institucional n.º 05 foi emitido pelo Presidente Costa e Silva em dezembro de 1968, e é considerado o Ato mais duro da “Revolução.” Isso não explica muito. Vamos exemplificar.

Imagine-se, leitor, vivendo num país chamado Cincolândia. Os Cincolandenses, a população de Cincolândia, elegem seus Deputados Federais (Em Cincolândia, não há vereadores, senadores ou deputados estaduais, pois os Cincolandeses preferem gastar esses recursos com educação e saúde.) Mas, um grupo de poderosos tomou o poder, e os presidentes não são mais eleitos pelo povo. As Revoluções precedem a Tirania?

Os Cincolandeses discordam de medidas autoritárias do grupo poderoso, que pode ser de esquerda ou de direita. O leitor escolhe. Os Cincolandeses organizam protestos de rua contra as medidas do Presidente de Cincolândia, Sr. Costa Cinco. Num determinado dia, um jovem deputado, Alves Quatro, critica no Parlamento as medidas autoritárias do Presidente Costa Cinco. Radicalizando, Alves Quatro aconselha moças a não namorarem membros do grupo poderoso. Era um protesto contra as medidas autoritárias de Costa Cinco. Inconformado, o Presidente Costa Cinco edita o AI-5.

Maior que a Constituição, o AI-5 é claro: o Presidente Costa Cinco pode fechar o Parlamento ao seu bel prazer (isso ocorre em estado de sitio ou fora dele). Quando quiser, Costa Cinco pode reabrir o Parlamento. Fechado o Parlamento de Cincolândia, Costa Cinco pode legislar sobre todas as matérias (artigo 2º, AI-5). Sem discussões, sem debates. A Tirania é subestimada?

Cincolândia tem problemas: crianças estão fora da escola, e doentes não têm atendimento público de saúde. A fome persiste. Mulheres “podem” ser espancadas pelos maridos. A deputada Ivete Três quer mudar tudo isso, e aprova projeto protegendo as crianças, os doentes, os famintos e as mulheres. Escorado no AI-5, Costa Cinco fecha o Parlamento e revoga as leis aprovadas por Ivete Três por contrariarem a “Revolução” (§ 1º, art. 2º, AI-5.) Crianças, doentes, famintos e mulheres de Cincolândia continuam como sempre estiveram: desprotegidos. A Tirania não protege os mais fracos.

Claro, tanto a “radicalização” do deputado Alves Quatro, quanto a “ousadia” da deputada Ivete Três foram punidas: eles tiveram seus mandatos parlamentares cassados. Como milhares de outros opositores Cincolandenses sem mandato, os deputados não podiam mais votar ou serem votados por 10 anos (art. 4º, AI-5). Justificativa: manter a “Revolução.”

Pior destino teve Barbosa Sete. O AI-5 autorizou a escolha de prefeitos das cidades de Cincolândia com base no interesse nacional (art. 3º, AI-5). O que é Interesse Nacional? Não havia definição. Barbosa Sete, jornalista do maior periódico de Cincolândia, escreveu numa matéria: “Os amigos, os parentes, os compadres, os apoiadores, os fazendeiros, os industriais… os amigos, e os amigos dos amigos de Costa Cinco viraram prefeitos nas cidades de Cincolândia. Por isso mesmo, não precisam prestar contas de seus atos.”

A consequência foi imediata: seu pequeno pasquim, A Realidade, foi censurado por longas quatro semanas até que foi totalmente proibido pelo Presidente Costa Cinco. Seguiram-se: proibição de frequentar lugares públicos e privados, com a exceção da casa da sua mãe; autorização prévia para sair de casa; e, por fim, a determinação que residisse no campo, longe da vida urbana que tanto adorava (art. 5º, III; IV “a,” “b” e “c”, AI-5). Barbosa Sete também foi proibido de exercer o direito à propriedade de seus bens (§ 1º, art. 5º, AI-5). A Tirania é tolerada?

Irresignado, Barbosa Sete recorreu ao Supremo Tribunal Federal de Cincolândia, órgão austero, não televisionado, e composto de três juízes apenas. Uma casa simples com forro de madeira abrigava os juízes. Nunes Oito, um dos juízes do Tribunal, restabeleceu os direitos de Barbosa Sete. O que o juiz Nunes Oito não contava é que ele próprio seria “guilhotinado.” O Presidente Costa Cinco demitiu o juiz Nunes Oito, mas não sem antes revogar a decisão que beneficiava o jornalista Barbosa Sete (Arts. 6º e 11, AI-5.). A Tirania nunca é somente pessoal.

Como o Presidente podia decretar livremente o estado de sítio e fixar seu prazo, o Presidente Cinco foi além, exigindo: a) que todas as comunicações por celular, e-mails, correspondência e whatsapp fossem gravadas e analisadas; b) que todos os conteúdos jornalísticos, institucionais e recreativos fossem previamente autorizados na TV, jornal ou qualquer outro meio de comunicação; c) que todas as diversões públicas dependessem de autorização, inclusive panelaços, buzinaços e protestos. Nas portas dos quartéis? Jamais; d) as prisões dos deputados Alves Quatro e Ivete Três, do jornalista Barbosa Sete e do juiz Nunes Oito em local incerto e não sabido e de todos os detratores da “Revolução.” Isso permitiu a livre e impune prática de tortura; e) busca e apreensão em todas as casas de uma cidade à discricionariedade da autoridade policial; f) a limitação de reuniões em clubes de serviços, associações empresariais, entidades sindicais, igrejas (tal qual ocorreu conforme a escolha ideológica da “Revolução”); g) restrições ao habeas corpus e, portanto às próprias prisões determinadas pelo Presidente Costa Cinco e seus subordinados  (arts. 7º, e 9º e 10º, Ai-5; art. 152, da Constituição Federal de 1967). A Tirania não tem limites.

Tudo isso aconteceu em Cincolândia com base no AI-5, e que pena: a ficção imita a realidade.

A Tirania é um risco às democracias. Porém, há soluções democráticas para resolver nossas crises, e essas soluções podem ser aperfeiçoadas. Mas, somente na democracia. Que o aniversário da derrota da Emenda “Democracia,” digo Emenda “Dante de Oliveira” nos  traga mais democracia!

*Rinaldo Ribeiro de Almeida Segundo é Promotor de Justiça em Mato Grosso

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