No calendário, 31 de janeiro é um dia como outro qualquer, para muitos. Porém, para Mato Grosso, não. Seu simbolismo é tão forte que o mesmo deveria ser transformado em feriado e pausa para reflexão sobre seu significado tanto para o povo mato-grossense quanto para a política de interiorização nacional que abriu portas ao sonho de brasileiros que precisavam encontrar um lugar para chamar de seu, onde pudessem viver em paz e sonhar. Naquela data, em 1971, instalou-se em Cuiabá o 9º Batalhão de Engenharia de Construção (9º BEC) com a missão de realizar a obra que anteciparia a ocupação populacional do vazio demográfico na calha dos rios Teles Pires, Juruena e Tapajós: a abertura da Rodovia BR-163, para nós, a Cuiabá-Santarém, e para os vizinhos paraenses, Santarém-Cuiabá.
No Exército não existe o eu. A missão BR-163 foi delegada ao 9º BEC ao rumo Norte. Em sentido contrário, o 8º BEC, de Santarém, a executou.
Imediatamente após a instalação do 9º BEC, seu comandante, o coronel Roberto Azevedo da Rocha Paranhos, deslocou o maquinário de Cuiabá rumo ao rio Arinos, que é o marco inicial da região do Nortão e onde militares e civis já estavam em campo há alguns meses. Nos primeiros dias pouco ou quase nada se fez por conta do rigoroso inverno amazônico. Em 11 de junho de 1971 o coronel José Meirelles assumiu o comando daquele batalhão e a obra efetivamente fervilhou.
Discreto, Meirelles evitava citar nomes importantes na construção. Porém, numa de nossas conversas, em sua casa, em Cuiabá, revelou-me que o topógrafo civil Antônio Nunes Severo Gomes foi exemplar. No comando, o coronel defendia junto ao Incra a regularização fundiária do eixo da rodovia e colaborava com os projetos privados de colonização no Nortão. Revelou-me, também, que o serviço de aerofotogrametria para a abertura da rodovia foi realizado pela companhia aérea Cruzeiro do Sul. O 9º BEC estava no auge da popularidade. Para evitar possíveis ciumeiras por parte do 16º Batalhão de Caçadores (rebatizado 44º Batalhão de Infantaria Motorizado) em Cuiabá, ele criou o conciliador slogan Integração é com o 9º BEC e Segurança com o 16º Batalhão de Caçadores.
Pormenorizar a construção da BR-163 seria redundante. Porém, sempre é oportuno destacar o significado de sua obra e seu alcance. No entanto, é preciso mostrar que essa rodovia foi sonhada pelo governador José Vieira Couto de Magalhães, no Império, e foi incluída no Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, que sonhava com a criação de uma cruz rodoviária na Amazônia, representada pela BR-163 e a BR-230, a Transamazônica. A autorização para sua execução foi dada pelo presidente Emílio Garrastazu Médici.
Quando os homens e o maquinário do 9º BEC chegaram ao Nortão havia somente uma cidade na região: Porto dos Gaúchos, fora da margem da futura rodovia e fundada pela ousadia do empresário gaúcho Guilherme Meyer, à margem do rio Arinos, em 3 de maio de 1955 e emancipada no dia 11 de novembro de 1963. Com a abertura da BR-163 surgiram 35 cidades na região: Nova Mutum, Lucas do Rio Verde, Sorriso, Sinop, Itaúba, Nova Santa Helena, Terra Nova do Norte, Peixoto de Azevedo, Matupá, Guarantã do Norte, Novo Mundo, Nova Guarita, Marcelândia, União do Sul, Feliz Natal, Cláudia, Santa Carmem, Vera, Nova Ubiratã, Santa Rita do Trivelato, Colíder, Nova Canaã do Norte, Carlinda, Alta Floresta, Paranaíta, Apiacás, Nova Monte Verde, Tapurah, Ipiranga do Norte, Itanhangá, Tabaporã, Novo Horizonte do Norte, Juara, Novo Horizonte do Norte e em fase de instalação, Boa Esperança do Norte.
O Nortão, que nasceu com a BR-163, é a região que se espalha por uma área da Amazônia Mato-grossense situada abaixo do Paralelo 13 até as divisas com Pará e Amazonas e delimitada pela margem esquerda do rio Xingu e alguns de seus formadores, e pela direita do rio Arinos até sua foz no Juruena, prosseguindo por ele em sua margem direita até o encontro das águas com o Teles Pires, onde começa o Tapajós. No tocante aos municípios banhados pelo Arinos, para efeito de limites consideram-se como partes integrantes do Nortão somente os que têm sede em sua margem direita. Essa área com 233.038 km² representa 25,80% do território mato-grossense de 903.208 km² e se fosse estado, seria o 12º em extensão e maior que Rondônia, Acre, Roraima, Amapá, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina ou o Distrito Federal. Enquanto o 9º e o 8º BEC avançavam, o vazio demográfico do eixo de influência da BR-163 recebia pioneiros, principalmente em Mato Grosso.
Quando da abertura da rodovia e nos anos subsequentes seu eixo de influência serviu para esvaziar as pressões sociais em outras regiões. Havia muita pressão agrária no Rio Grande do Sul, inclusive por índios caingangues; pequenos, médios e grandes produtores paranaenses foram atingidos pelas águas para a formação do Lago da Hidrelétrica de Itaipu e não tinha para onde ir; brasileiros deslocados para o Paraguai, onde eram chamados de brasiguaios, cruzaram o país em busca do Nortão; além desse cenário, o sonho com uma vida nova, por parte de mineiros, goianos, paulistas, nordestinos e de outras regiões apontou para a nova fronteira de ocupação populacional. Não é exagero afirmar que à época os gaúchos se dividiam entre os que queriam partir em busca do amanhã e aqueles que não desejavam ficar.
Naquele cenário pré-migratório o caminho natural seria a lendária Belém-Brasília construída por Juscelino Kubitschek, que cruza municípios goianos, tocantinenses (antes Norte de Goiás), maranhenses e paraenses. O então governador José Fragelli temia a concorrência predadora da grande rodovia que liga Belém a Anápolis e tratou de chamar a atenção para o Nortão. Essa política, à princípio, foi defendida em Brasília pelo senador Filinto Müller, que morreu em um acidente aéreo logo após os primeiros movimentos do xadrez pelo deslocamento das ondas migratórias para Mato Grosso. Desse contexto participaram os colonizadores paulistas Ênio Pipino, Ariosto da Riva, José Aparecido Ribeiro e Hermínio Ometto; o catarinense Claudino Francio; o paranaense José Pedro Dias – Zé Paraná –; e o gaúcho Norberto Schwantes. Formou-se uma corrente que tem analogia na parceria público-privada (PPP).
Para Schwantes participar da corrente o governo federal permitiu que ele colonizasse uma gleba que era área de manobra do Exército. Desse entendimento surgiram as cidades de Terra Nova do Norte e Nova Guarita; antes Schwantes estava em cena colonizando Água Boa, Canarana e Querência, todas no Vale do Araguaia.
O Eldorado do Nortão despertou interesse de aventureiros, profissionais liberais, religiosos, pesquisadores, professores e empresários. Os médicos paranaenses Jorge Yanai e Mário Nishikawa foram pioneiros em Sinop e Alta Floresta, respectivamente. O empresário gaúcho Arlindo Bellincanta instalou uma madeireira e posteriormente um frigorífico bovino em Sinop, onde o padre capixaba João Salarini foi um dos pioneiros. À princípio em Vera e posteriormente em Matupá, a paranaense Irmã Adelis foi um Anjo de Luz no combate à malária. O agricultor gaúcho Antônio Domingos Debastiani fundou Feliz Natal. Os irmãos catarinenses Bedin deram o sopro de vida a Itaúba. E o garimpeiro piauiense Antônio Alves da Silva, o Cacheado, Novo Mundo, onde atendendo pedido da irmã Glícia Maria Barbosa da Silva, da Ordem Dominicana, de Mundo Novo, em Mato Grosso do Sul, o Incra reservou parte da área do Parque Peixoto de Azevedo, na região do rio Nhandu, para assentar cerca de 600 colonos daquele município e outros brasileiros que ocupavam ou eram proprietários de terras no Paraguai, os chamados brasiguaios.
A região tinha um quê atrativo e todos a queriam abraçar. Foi assim que o cearense José Humberto Macêdo, responsável pelo Incra na divisa de Mato Grosso com o Pará, pediu autorização àquele órgão fundiário para criar a vila, que hoje é a importante cidade de Guarantã do Norte, da qual foi prefeito.
O Nortão sempre cresceu, mas o vácuo institucional atravancava o desenvolvimento.Em 1979 o governador Frederico Campos criou os municípios de Sinop, Alta Floresta e Colíder. Porém a ampliação da autonomia política aconteceu em 13 de maio de 1986 quando o governador Júlio Campos – agora deputado estadual – emancipou Sorriso, Itaúba, Terra Nova do Norte e Peixoto de Azevedo, à margem da BR-163, e Vera, Marcelândia, Nova Canaã do Norte e Novo Horizonte em seu eixo de influência.
O Nortão é a região mais próspera de Mato Grosso. Coleciona superlativos econômicos cultivando soja, algodão e milho; na pecuária bovina; e na agroindústria. Além disso, detém indicadores sociais acima da média nacional.
Sinop com 196.312 habitantes é o quarto município mais populoso de Mato Grosso, seguido por Sorriso (110.635), Lucas do Rio Verde (83.798), Alta Floresta (58.613) e Nova Mutum (55.839). A conquista econômica e os avanços sociais aconteceriam mais dia menos dia, porém a abertura da BR-163 e a política de ocupação do vazio demográfico foram antecipados com aquela rodovia longitudinal, que Meirelles chamava de Predestinada.
A inauguração da BR-163 aconteceu em 20 de outubro de 1976, no KM 877, na Cachoeira do Curuá (PA), onde o 8º BEC e o 9º BEC se encontraram. O corte da fita pelo presidente Ernesto Geisel simbolizou uma nova era da interiorização nacional. Geisel estava acompanhado pelos governadores Garcia Neto e Aloysio Chaves (PA), pelo ministro dos Transportes Dirceu Araújo Nogueira e pelos comandantes do 9º e do 8º BEC, o tenente-coronel Isaac Sukerman e o tenente-coronel Ricardo Moniz de Aragão, respectivamente.
A rodovia tem 1.770 km entre Cuiabá e Santarém. Ainda há um trecho encascalhado entre Placas e Santarém. Sua pavimentação se arrasta. O primeiro trecho contemplado liga Cuiabá a Nova Santa Helena, numa extensão de 620 km e foi executado pelo governo de Júlio Campos por delegação do governo do presidente João Figueiredo. Parte do crédito pelo avanço de sua pavimentação se deve ao ex-presidente do Dnit, Luiz Antônio Pagot.
Transcorridos 53 de sua instalação em Cuiabá, o 9º BEC está de malas prontas para seu novo aquartelamento: Sinop, a cidade que leva suas digitais. A política de segurança nacional impõe a mudança, que deverá acontecer em 2025. Creio que será apenas uma alteração oficial de endereço, pois a capital mato-grossense jamais sairá de seu batalhão construtor nem ele a deixará.
POR EDUARDO GOMES