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Mulher, que se passava por homem, morre e não pode ser enterrada por falta de documentos

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Morte natural. O diagnóstico do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) foi para uma pessoa identificada como Lourival Bezerra de Sá, de 78 anos, no dia 5 de outubro de 2018. Desde então, o que era pra ser um corpo, passando pelos trâmites de velório a enterro, se tornou um enigma para as forças policiais de Mato Grosso do Sul.

O corpo está parado no Instituto de Medicina e Odontologia Legal (Imol), em Campo Grande há 4 meses. A médica plantonista foi quem descobriu que, na verdade, tratava-se de uma mulher. Conforme um dos peritos plantonistas, papiloscopistas coletaram as digitais e enviaram para órgãos de todo o país, com a intenção de identificar a pessoa.

“Inicialmente, o corpo chegou a ser encaminhado ao Serviço de Verificação de Óbito [SVO], que trata de casos de mortes naturais, porém, ao chegar aqui no Imol, foi constatado outro sexo. O boletim de ocorrência então foi mudado na Depac [Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário] Centro e encaminhado para as providências necessárias”, afirmou ao G1 o perito.

Ainda conforme a investigação, Lourival havia registrado filhos com este nome, como se fosse homem. Na casa dele, na Vila Popular, a polícia inclusive apreendeu documentos de conta bancária e até registros do imóvel em nome dele. Há 35 anos, Lourival morava com uma cuidadora. Ela alegou desconhecer a questão do sexo.

Um vizinho de Lourival, que prefere não se identificar, conta que conheceu-o através de sua companheira. “Era um casal aparentemente normal, de idosos. Ele tinha 78 anos e ela cerca de 65 anos. Eles viviam tranquilos, a região ali era sossegada e eles possuíam um filho adotivo e uma casa de aluguel na frente. Quando os conheci, há 2 anos, o filho tinha casado recentemente”, comentou.

Sobre as características físicas, o vizinho disse que Lourival conversava normalmente, como se fosse homem, e que ninguém desconfiava que tratava-se, na verdade, de uma mulher: “Ele tinha estatura baixa, usava boné e eu presenciei, várias vezes, a esposa dele falando que ele não tinha documentos, ressaltando que, ou ele tinha perdido, ou tinha sido roubado, mas quando eu me oferecia para ajudá-los a reaver os documentos, ela não falava coisa com coisa. Soube até que ele passou dificuldade para ser atendido em um posto de saúde, por não ter o prontuário”, disse.

História

Para entender a história de Lourival é preciso voltar 50 anos no tempo e a primeira parada é em Goiânia (GO). Foi na cidade que ele conheceu a primeira companheira, Maria Olina de Souza Apollo. Com ela registra quatro filhos.

De Goiânia o casal se muda para Ituverava, no interior de São Paulo. Lourival e Maria Olina se separam e ele segue sozinho para Cuiabá (MT).

Segundo a delegada de polícia Christine Grossi, que investiga o caso, nesse meio tempo ele conheceu a cuidadora, que depois se tornaria sua companheira. De Cuiabá o casal se muda para Campo Grande.

Em Campo Grande, Lourival trabalhou como pintor de paredes, corretor de imóveis e chegou a abrir uma empresa. Nos últimos tempos eram médium em um centro espírita. Na cidade viveu com a cuidadora. Ela o acompanhou por quase 40 anos. Ele assumiu a filha dela e os dois adotaram mais um menino.

A cuidadora prefere não falar sobre o assunto.

Segundo a delegada, a investigação aponta que sempre houve um grande companheirismo entre Lourival e a cuidadora, mas não existiu de fato uma relação como se fossem marido e mulher. “É como se fosse um acordo de convivência entre ambos e juntos criaram os filhos”.

Para a polícia, a cuidadora tinha desconfianças sobre o companheiro.

A vizinha e amiga da cuidadora, Ivaldirene Monteiro dos Santos, disse que ela chegou a comentar que quando Lourival já estava doente tentou dar um banho nele por diversas vezes, mas que ele não aceitava. Quando concordou, ela encontrou uma faixa amarrada aos seios de Lourival.

Exames feitos no corpo de Lourival, pelo IMOL, em Campo Grande, apontam que foram encontrados lesões na pele, na região das mamas, que são compatíveis e característicos de que ele usava faixas ou outras roupas apertadas com o objetivo de disfarçar a presença das mamas.

Muito reservado e mesmo com problemas de saúde, Lourival não gostava de médicos. Ele também evitar usar shorts ou camisetas e só tomava banho de portas fechadas.

“Lourival tomava muito cuidado pra não ser visto nu, tanto que para tomar banho ele trancava a porta do quarto, trancava a porta do banheiro. Para dormir, ele dormia de calça e de cinto muito apertado”, diz a delegada que investiga o caso.

Onde nasceu Lourival?

Lourival dizia para vizinhos e amigos que era de Palmeira dos Índios, município de Alagoas. Mas dias antes de morrer ele afirmou a cuidadora que sua verdadeira identidade seria a de Enedina Maria de Jesus. Ele também passou os nomes dos pais, que seriam Cícero Gomes da Silva e Tertuliana Maria de Jesus e ainda dos irmãos: José Gomes da Silva, Antonio Gomes da Silva, Sebastião Gomes da Silva, Juvenal Gomes da Silva e Gersina Maria de Jesus.

Lourival revelou ainda que teria nascido em Bom Conselho, interior de Pernambuco e não em Alagoas.

A delegada diz que a esperança é que com base nessas informações se localize algum parente de Lourival, para que esses familiares possam dar um novo rumo a investigação.

A reportagem consultou os cartórios das duas cidades, mas nos arquivos não há registro de nenhuma Enedina Maria de Jesus. Nas igrejas, nenhuma criança com esse nome foi batizada.

Um detalhe importante é que Lourival dizia ter perdido os principais documentos, que trazem informações sobre filiação ou qualquer outro tipo de dado sobre sua origem. Sobrou apenas um CPF no nome dele.

O que a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul tenta agora descobrir é quem foi, de fato, Lourival Bezerra de Sá. Quem é a mulher que se fez passar por homem.

Um dos recursos que está sendo utilizado na investigação é buscar a identificação a partir das digitais. O diretor do Instituto de Identificação de Mato Grosso do Sul, Maurilton Ferreira de Souza, diz que as impressões digitais coletadas do corpo foram enviadas para todo o país.

“Rio Grande do Sul, Pernambuco, Mato Grosso, Tocantins, Paraná, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Goiás, já nos ‘responderam’, e a resposta deles é negativa, que não foi identificado, ou seja, aquelas impressões digitais não foram encontradas nos cadastros desses estados”, diz.

Outra questão levantada durante a investigação policial é sobre os filhos de Lourival. A polícia quer as ber como ele conseguiu registrar as crianças e quem são os pais verdadeiros dos filhos que ele criou com a primeira companheira, Maria Olina.

Uma das filhas dele, Glaydiany Apollo de Sá, que mora em Caldas Novas, Goiás, diz que a história é muito complicada para a família entender. “Enquanto filha, muito difícil, uma história muito complicada, porque até então, cresci achando que meu pai chamava Lourival, tá lá como pai, aí quando faleceu, era uma mulher. Ou seja, então, eu não tenho pai, eu não tenho mãe. Aí estamos aguardando o resultado de um DNA pra saber se um de nós somos filhos da Lourival Bezerra de Sá, como mulher, que pode ser mãe, né, e também da Maria Olinda”, diz.

Sem uma identificação oficial, o corpo de Lourival Bezerra de Sá continua no IMOL e por causa da investigação não há prazo para ser liberado.

“O que é importante nessa investigação é que quem tenha conhecimento de quem possa ser essa mulher que se identificou como Lourival e o motivo pelo qual ela fez isso, para nos auxiliar nesse esclarecimento, porque se não ela vai acabar sendo enterrada como indigente”, diz a delegada que investiga o caso.

A família de Lourival também aguarda ansiosamente um esclarecimento sobre o caso. “Ela também deve ter uma história, ter um nome, é uma pessoa. Se cometeu algum erro ou não, não pode ser enterrada como indigente. Eu não desejo isso pra ela”, diz Glaydiany.

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