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Na França, acordo entre UE e Mercosul enfrenta oposição e protestos de agricultores, ambientalistas e até ministros

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Enquanto o setor industrial francês comemora, agricultores, ambientalistas e inúmeros políticos da França, inclusive do partido do governo, se opõem abertamente ao acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, anunciado no dia 28 de junho.

Esses setores contrários ao acordo redobraram a pressão sobre o presidente Emmanuel Macron para que a França não ratifique um tratado que irá permitir a entrada de produtos agrícolas, sobretudo do Brasil, no país.

Produtores agrícolas e ecologistas franceses afirmam que o Brasil não cumpre as mesmas exigências sanitárias, trabalhistas e ambientais impostas a produtores da Europa e que, por isso, os produtos sul-americanos têm preços “incomparáveis” aos dos europeus.

Na visão deles, além da “concorrência desleal” por conta disso, os consumidores do bloco também seriam “enganados” ao comprar produtos agrícolas do Mercosul, afirmam.

Apesar das oportunidades econômicas – a Comissão Europeia estima que o acordo permitirá às empresas do bloco economizar 4 bilhões de euros por ano em tarifas para vender no Mercosul – a contestação vem ganhando força na França. Agricultores franceses já fizeram protestos pelo país na terça-feira e prometem colocar tratores nas ruas.

Do lado político, diante de tantas críticas e reticências em relação ao acordo, o governo francês tem demonstrado prudência, prometendo examinar o texto em detalhes antes de validá-lo.

Ministros franceses declararam na terça-feira (2/7) não saber se o país dará apoio ao acordo comercial. “O acordo só será ratificado se o Brasil respeitar seus engajamentos. Nós vamos esmiuçar o texto”, afirmou François de Rugy, ministro da Transição Ecológica.

“Não teremos um acordo a qualquer preço. A história ainda não terminou”, afirmou o ministro francês da Agricultura, Didier Guillaume.

A versão definitiva do texto só será publicada nas próximas semanas. O acordo ainda precisa ser aprovado pelo Parlamento europeu, e pelos legislativos nacionais dos 28 países do bloco.

As críticas contra o acordo com o Mercosul complicam a situação política de Macron, que alimenta uma imagem internacional de defensor do meio ambiente. O presidente anunciou o lançamento “em breve” de uma “avaliação independente, completa e transparente” do tratado.

Há divisões sobre o assunto dentro do próprio partido de Macron. O presidente francês defendeu o acordo em declarações na terça-feira, em Bruxelas, e alertou contra os riscos de “neoprotecionismo”.

Para o deputado Jean-Baptiste Moreau, do partido do governo, o acordo é “ruim”. Em resposta à declaração de Macron, ele afirma ser preciso achar um meio termo entre a “ingenuidade” do livre comércio no passado (que não levava em conta aspectos ambientais e o desequilíbrio de setores) e “o protecionismo idiota do presidente americano, Donald Trump, que não favorece a economia”.

Brasil ‘sem regras’

A insatisfação entre os produtores rurais franceses é grande. “Nos põem em concorrência desleal com um país que não têm nenhuma regra”, disse à BBC News Brasil Patrick Bénézit, secretário-geral adjunto do FNSEA, maior sindicato agrícola da França, que reúne mais de 200 mil produtores.

“O Brasil não tem os mesmos padrões europeus. Tudo o que é proibido na Europa é autorizado no país”, diz ele. Segundo Bénézit, 74% dos pesticidas utilizados no Brasil são proibidos na Europa, muitos, há décadas. O Greenpeace, por sua vez, estima que 30% dos 239 agrotóxicos liberados desde janeiro pelo governo do presidente Jair Bolsonaro já foram vetados no bloco europeu.

A especialista Aline Gurgel, do Instituto Oswaldo Cruz, entrevistada pelo jornal francês Le Monde no fim de junho, disse que dos 197 agrotóxicos que começaram a ser comercializados em maio, quase metade é considerada extremamente ou altamente tóxica.

Além disso, agricultores franceses e europeus afirmam que precisam cumprir normas sanitárias e ambientais cada vez mais rigorosas, que encarecem os custos de produção, enquanto o Brasil aplica métodos proibidos na Europa, como a utilização de hormônios de crescimento e de antibióticos pelo setor de carnes e a alimentação de bovinos com farinha de carne, afirmam.

O desmatamento no Brasil é outra forte crítica dos opositores.

“Não podem nos exigir de fazer cada vez mais produtos de melhor qualidade e, ao mesmo tempo, abrir as comportas para qualquer coisa”, diz Bénézit, da FNSEA, acrescentando que a rastreabilidade bovina “é inexistente no Brasil.”

O Copa Cogeca, principal sindicato agrícola europeu, diz que “a caixa de Pandora dos padrões duplos na agricultura” foi aberta e afirma que o acordo amplia ainda mais o fosso entre o que se exige dos agricultores europeus e o que se tolera dos produtores do Mercosul.

‘Blasfêmia’

Antônio Jorge Camardelli, presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), afirma que é “uma blasfêmia” alegar que os produtores do Brasil utilizam promotores de crescimento, tanto hormônios quanto antibióticos para esse fim. Ele diz que a legislação nacional não autoriza isso e também não permite ração de origem animal.

“Não estou vendo por enquanto nenhuma argumentação técnica que dê vazão às reclamações dos produtores europeus”, diz Camardelli. Segundo o presidente da Abiec, somente fazendas brasileiras registradas (aprovadas) pela União Europeia têm autorização para exportar para o bloco, o que não é exigido de outros países.

Camardelli afirma ainda que a carne exportada, em termos sanitários, é a mesma consumida no Brasil, que representa 80% da produção. “Não tem diferença entre mercado interno e externo. A saúda pública é para todo mundo.”

“Estamos muito tranquilos”, diz o presidente da Abiec em relação às alegações dos produtores de carne franceses e europeus.

Segundo ele, há rastreabilidade do gado no Brasil e cada boi enviado ao abatedouro tem um processo de identificação de sua origem e das fases no frigorífico. A diferença é em relação a alguns cortes específicos, que não têm a origem especificada, apenas o lote e a data.

Tarifa zero

O acordo firmado em Bruxelas no dia 28 de junho de 2019, após 20 anos de negociações, prevê que 82% das exportações agrícolas do Mercosul para a Europa terão tarifas de importação zeradas, de acordo com um documento divulgado pela Comissão Europeia.

O restante será sujeito a uma liberalização parcial, o que inclui cotas de comercialização para produtos “sensíveis” para os europeus, como carne bovina, um tema espinhoso até a reta final das discussões, frango, açúcar e etanol.

Do lado europeu, 93% dos produtos agrícolas do continente terão tarifas eliminadas gradualmente no Mercosul.

Apesar disso, o FNSEA diz que a abertura do mercado do Mercosul não compensa para os agricultores franceses, que sofrerão com a concorrência do bloco sul-americano. “Vamos vender algumas centenas de toneladas aqui e ali no Mercosul”, diz ele, sugerindo que a contrapartida para isso não será vantajosa.

“Vai haver uma abertura para os produtos lácteos sofisticados, certos queijos ou leite infantil e em pó”, mas já venderíamos esses produtos mesmo sem o acordo”, afirma Bénézit.

O setor leiteiro brasileiro, menos competitivo, sofrerá concorrência direta dos europeus, principalmente franceses. Europeus, como os países do Mercosul, poderão vender 30 mil toneladas de queijo com tarifa zero (a tarifa atual para importação é de 28%).

Já o setor de vinhos europeu, muito competitivo, celebra o fim das tarifas, hoje de 27%, no prazo de oito anos. O champanhe e outros espumantes terão suas tarifas zeradas após 12 anos. Azeite, frutas frescas, como maçãs e peras, ou ainda biscoitos, chocolates e batatas congeladas integram a lista de produtos agrícolas da União Europeia que serão liberalizados no Mercosul.

Os europeus também conseguiram obter a proteção da indicação geográfica (a denominação de origem) de 357 produtos do continente, como queijo francês Comté ou presunto italiano de Parma, para evitar imitações. Também foi um tema tenso nas negociações devido ao grande número de produtos da lista, na avaliação do governo brasileiro.

Para Bénézit, da FNSEA, o reconhecimento da origem geográfica é importante, mas não muda sua visão geral sobre os problemas do acordo comercial. O bloco sul-americano terá algumas dezenas de produtos protegidos, como a cachaça brasileira.

A França é uma potência agrícola, mas em geral manteve um modelo de agricultura familiar, com pequenas propriedades, de apenas alguns hectares, afirma Bénézit, criador de gado. “O tamanho médio das fazendas na França é de 100 cabeças, bem diferente das do Brasil, com rebanhos que podem ter mais de 100 mil”, afirma. Ou seja, os franceses não têm os mesmos volumes e escalas de produção dos brasileiros, o que dificulta a competição.

‘Calamidade para os brasileiros’

É raro na França ecologistas e agricultores compartilharem a mesma visão sobre um assunto, como no caso do acordo entre Mercosul e União Europeia.

O Europa Ecologia Os Verdes denuncia a política ambiental do presidente Bolsonaro, o aumento do desmatamento no Brasil, o uso maciço no Brasil de pesticidas e a fiscalização pouco rigorosa da produção alimentar no país.

“O acordo vai destruir a agricultura europeia que já sofre bastante”, disse à BBC News Brasil Sandra Regol, porta-voz do partido. Segundo ela, a França já perdeu 5 milhões de produtores rurais nos últimos 40 anos.

Regol diz que os pesticidas liberados pelo governo Bolsonaro farão com que os alimentos vendidos na Europa fiquem “altamente tóxicos”.

“É um problema não só para os europeus, mas também é uma calamidade para os brasileiros que consomem esses produtos em termos de impacto sanitário”, diz ela.

O glifosato, agrotóxico amplamente utilizado no Brasil, só poderá ser usado na Europa até 2022, conforme uma decisão da Comissão Europeia. A Áustria já se antecipou e foi o primeiro país do bloco a anunciar, no dia 2 de julho de 2019, a proibição desse pesticida.

Considerado eficiente e barato, o glifosato é amplamente utilizado no mundo. O fim de seu uso na Europa deverá aumentar os custos de produção dos agricultores do continente.

Os ecologistas se tornaram a terceira maior força política na França nas eleições europeias realizadas em maio. O presidente Macron sabe que precisa do apoio desse partido nas próximas eleições no país, como as municipais em 2020.

Lígia Dutra, superintendente de Relações Internacionais da Confederação da Agricultura e da Pecuária do Brasil (CNA), que reúne mais de dois milhões de produtores, diz que há um “desconhecimento proposital” em relação aos pesticidas brasileiros e que os agricultores do país cumprem as mesmas regras da União Europeia.

Para exportar, o Brasil respeita os limites de resíduos de defensivos exigidos pelo bloco. Por ter uma agricultura tropical, os agrotóxicos utilizados no Brasil são diferentes dos usados em climas temperados, acrescenta Dutra.

No mercado interno, acrescenta Dutra, o Brasil, como a Europa, também fixou seus limites de resíduos de pesticidas e segue ainda, no caso de vários alimentos, os tetos definidos pela FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.

Regras ambientais rigorosas no Brasil

Para a superintendente da CNA, os agricultores brasileiros têm regras ambientais “muito mais rigorosas”, impostas pelo Código Florestal, do que os franceses e europeus. Segundo ela, o desmatamento não tem aumentado em áreas de produção rural no Brasil.

Ela destaca ainda que os agricultores europeus têm vantagens porque recebem subsídios, de 58 bilhões de euros em 2019, mais do que o valor bruto de toda a produção agropecuária brasileira. Uma das críticas na Europa é que essa ajuda só beneficia grandes produtores.

Para a Dutra, as acusações dos franceses são “picuinha” e não têm fundamento econômico nem científico. “Os franceses gostam muito de atacar, enquanto nós, brasileiros, preferimos olhar para os nossos problemas e tentar resolver.”

O documento sobre os princípios do acordo com o Mercosul – um texto preliminar, já que a redação jurídica do tratado está sendo realizada – diz que os padrões sanitários e fitossanitários do bloco europeu serão mantidos e que esse ponto é “inegociável”.

O princípio de precaução prevê que a Europa possa barrar importações sob a alegação de que ela pode causar danos à saúde, sem comprovação científica disso. O mecanismo é na prática uma barreira não tarifaria. Mas para o governo brasileiro, uma série de condições foram incluídas no texto para evitar o uso indiscriminado desse sistema pelos europeus.

O tratado prevê ainda que mais de 90% dos bens industriais dos dois blocos ficarão isentos de tarifas para importação depois de um período de transição de até dez anos para a maior parte dos produtos.

Os europeus também se beneficiaram com o fim das alíquotas de setores como o de automóveis e autopeças, maquinário, químicos e fármacos, que terão mais de 90% de suas exportações liberalizadas.

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