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ARTIGO – Do lugar da criança à infância sem lugar: Por Eliane de Jesus

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Uma criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos.

Deleuze e Guattari

As crianças são os recém-chegados ao mundo, o estrangeiro, o outro, não adulto, por isso destoa daquilo que pensamos ser o modo como devem se portar. Afinal nossa lógica é adultocêntrica, de modo que, por mais que tenhamos sido criança um dia, não damos conta do que é de fato estar sendo criança em um mundo governado por adultos.

Das instituições pensadas para lidar com as crianças, aos espaços que possuem dentro do nosso lar, como fazer lugar para esses recém-chegados ao mundo? As cidades com suas pracinhas e parquinhos oferecem algumas possibilidades. Mas, e quanto aos demais espaços de socialização e convívio? Supermercados, restaurantes, bancos, e uma infinidade de lojas que frequentamos quase sempre acompanhados de uma criança; que não foi ali fazer compras, ou ser atendida, mas ali está ela.

As crianças estão a tanto tempo em nosso convívio diário que nos acostumamos com elas, e não nos perguntamos o quanto pode ser cansativo: uma hora no supermercado ou duas horas esperando em uma agência bancária. Se questionados certamente diremos que precisam aprender a se comportar, a ficar em silêncio enquanto o adulto faz “coisas de gente grande”, a sentar e esperar o responsável concluir suas tarefas: possivelmente alguma atividade maçante da vida adulta, nenhum pouco interessante para elas, e que nós mesmos fazemos por obrigação, contando os minutos para terminar.

Não estou dizendo que não podem se divertir fazendo compras, ou que dependendo de nossa disposição criativa, [oxalá que essa não nos falte], possamos dedicar parte desse tempo com elas: cantando, fazendo cócegas, criando uma história com o cenário disponível [devo dizer que provavelmente, em um banco lotado, por exemplo, isso pode incomodar os presentes. Digo por experiência própria]. Certo é que se esses espaços se dispusessem a pensar nas crianças como um público a ser considerado, teríamos lugares mais acolhedores para elas.

E se elas tivessem abertura para ir lugarizando[1] esses espaços com suas vivências e potência criativa?

Diga-me: se pudesse escolher entre um estabelecimento que possui um espaço para criança brincar e outro que oferece os mesmos serviços, mas, não possui esse lugar. Qual você elegeria? Estamos perdendo algo nesse processo, nesse tempo que exige celeridade, estamos deixando de considerar a infância, o tempo da criança. Para Anete Abramowicz “talvez o que as crianças tenham de mais potente seja a infância” (2017, p.25). Não podemos perder isso.

As crianças são muito sensíveis e sinceras, demonstram facilmente emoções, como descontentamento por exemplo. Não estão presas a convenções ou regras sociais que conhecemos tão bem.

Nesse percurso já vivenciei momentos difíceis, e hoje já consigo lidar melhor com algumas situações. Essa semana fomos até Juara trocar os pneus do carro e já prevendo que isso demoraria, fiz uma leitura dos lugares a nossa volta, a Ester já demonstrava alguma irritabilidade e eu mesma já me encontrava um tanto cansada para ser bem sincera.

Já imaginei sentar na Conveniência CRL e tomar um cappuccino que se recordo bem, ali servem um delicioso, mas, e a Ester? Lembrei que a conveniência do Auto Posto Arinos possui um espaço aconchegante com alguns brinquedos para criança. Não tive dúvidas, estava aí nosso local de parada. A espera foi tranquila e ela saiu pedindo bis.

E se os estabelecimentos de Porto também investissem em um espaço kids? Que bom seria sair para comer algo a noite e conversar, enquanto nossas crianças se divertem ali do lado. Para ser justa alguns [bem poucos por sinal] dispõe de um modesto “cantinho de brincar”, que embora com poucas opções ainda conseguem atrair a atenção de algumas crianças.

Sempre que ia ao antigo supermercado “Zanovello” a Ester já ficava na entrada, naquele espaço com brinquedos e uma mesinha para desenhos. No Bolôbeer ela experimentou todas as possibilidades da casinha de brinquedo com mais dois amiguinhos que fez por lá. Na “Lanchonete Tropical” salvo engano, também possui um espaço assim.

Espaços que poderiam se fazer lugar. As crianças se encarregariam de preenchê-los com sua vontade de vida, tornando-os mais atrativos. As vezes optamos por ficar em casa porque fica a sensação que só nós fomos convidados, não nossos filhos. Quem já se sentiu assim? Onde criança tem lugar, é nosso lugar também. Mas, se não há lugar para ser criança, o que podemos fazer? Sentá-las e torná-las um mesmo de nós? É isso que temos feito?

Fica a pergunta. Fica o convite. Quiçá esses espaços possam ser ampliados, repensados e planejados para tal fim. Quem sabe, futuramente, novos estabelecimentos considerem além de engenheiros convidar pedagogos para juntos criar um lugar aconchegante e prazeroso para nossas crianças. Ainda temos tempo para aventurar-nos nessa empreitada. Basta querer!

Eliane de Jesus: “Mestra em Educação pela UFMT, atuando na Educação Infantil do município de Porto dos Gaúchos”

Referências

ABRAMOWICZ, Anete. Introdução. In: ABRAMOWICZ, Anete; TEBET, Gabriela Guarnieri de Campos (org.). Infância e pós-estruturalismo. São Paulo: Porto de Idéias, 2017.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. ​Mil Platôs: ​capitalismo e esquizofrenia. vol.4. Tradução: Suely Rolnik. São Paulo: Ed.34, 1997.

[1] Vai se tornando num lugar (TAVANO; ALMEIDA, 2018, p.35).

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