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ARTIGO – Intolerância Religiosa. Mito ou Fato? por Gilda Portella

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Nos caminhos da história da intolerância religiosa, Sidnei Nogueira, radiografa o fenômeno da intolerância religiosa do Brasil e do mundo. O livro Intolerância Religiosa, conclui que as violações e perseguições religiosas crescem globalmente, e por aqui há um recrudescimento, vitimizando as religiões afro-brasileiras. Diz que o nome ‘intolerância religiosa’ mascara o racismo e encobre a violência infligida aos negros e negras de Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro).

Vendo este movimento como racismo epistêmico, estrutural, cultural, no exercício de apagamento da história de origem negra, numa esquizofrênica epistemologia, sem cosmovisão africana, sem produções de saberes, ignorando tecnologias e práticas, cujos guardiões culturais-religiosos, filosóficos são os terreiros e suas “ialorixás” – mãe de santo, é a sacerdotisa do terreiro e “babalorixá” – também conhecido como pai de santo, é o sacerdote das religiões afro-brasileiras.

A primeira juíza negra Tatiana dos Santos Batista, da comarca de Vila Bela da Santíssima Trindade-MT dá um enfoque jurídico ao Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa, e nos relata que: “a liberdade religiosa é para nós, no Brasil, um direito fundamental e também um Direito Humano. Direito fundamental, consagrado na Constituição Cidadã, de 1988, um direito humano reconhecido na declaração universal de Direitos Humanos e também em outros documentos internacionais, no qual o Brasil adotou no seu ordenamento jurídico”

Segundo a BBC, ‘Liberdade religiosa ainda não é realidade’: os duros relatos de ataques por intolerância no Brasil, em 29 de janeiro de 2023 afirma que: “O número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia.  A maior parte foi feita por praticantes de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. Seis em cada dez vítimas são mulheres. Só nos primeiros 20 dias de 2023, o Disque 100, canal para denúncias de violações de direitos humanos, registrou 58 ocorrências”.

A pesquisa revela a dura realidade brasileira, do racismo religioso enraizado na formação da sociedade brasileira, embrenhado nas relações sociais, culturais e religiosas cotidianamente, assim esses dados podem não refletir a realidade, pois de acordo com o relatório realizado pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro): “Mapeamento do Racismo Religioso Contra Os Povos Tradicionais de Religiões de Matriz Africana”, que ouviu lideranças de 255 comunidades tradicionais de terreiros, no qual 78% dos entrevistados relataram que membros de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência, física ou verbal, por racismo religioso”.

Outros dados merecem ser olhado com atenção foram coletados em ambientes virtuais, os números de casos criminais de intolerância religiosa quintuplicou em 2022: “Segundo levantamento da Safernet, ONG que mantém uma central de denúncias de violações contra direitos humanos, como racismo, misoginia e xenofobia, os ataques online saltaram de 614, entre janeiro e outubro de 2021, para 3,8 mil, no mesmo período de 2022, um crescimento de 522%.”.

Esses números alarmantes sinalizam forças orquestradas, sistematizadas pelo racismo, preconceito, injúria racial, atuando diariamente na tentativa de apagar, invisibilizar, de desmontar, tudo que for ligado às tradições culturais e de religiões de matriz africanas e afro-brasileiras.

No subitem do Livro: Intolerância religiosa trás: “Rumos da intolerância e do apagamento religioso preto e estigmatizado no Brasil: da negação à inexistência”, traz dados de pesquisas do livro Presença do axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro de Fonseca e Giacomini (2013) e o levantamento dos dados nacionais do disque 100.

A pesquisa demostrou que dos 840 terreiros cerca de 51% já sofreram agressão (discriminação religiosa); chama atenção os locais das agressões -57% ocorreram em espaços públicos – e apresenta os agentes agressores – 39% são evangélicos, isso os coloca em primeiro lugar entre agentes agressores e ou discriminadores.  No disque 100 os dados coletados vão de 2011 a 2018, trago a análise do ano de 2018 segundo Sidnei Nogueira:

“(…) das 506 denúncias, 30% (152) das vítimas são adeptos de umbanda, candomblé ou religiões de matriz africana; 1,97% (10), católicas; e 11,6% (59), evangélicas e protestantes. Do total, 51% (261) não especifica qual a religião. Os dados revelam que a religião hegemônica, a católica, quase não é perseguida e, na sequência, os evangélicos e protestantes sofrem cerca de 10% das perseguições. No entanto, os adeptos de umbanda, candomblé e religiões afins são alvo de 30% das perseguições. Ao se considerar a invisibilidade, a marginalização, a estigmatização e a vergonha desses grupos em assumirem ser praticantes dessas tradições religiosas de origem africana, pode-se elevar o número de denúncias para praticamente 80% com o somatório das denúncias com e sem informação da religião”.

Vemos aqui um agravamento pois 30 por cento das vítimas estão entre os adeptos de religiões de matriz africanas e afro-brasileiras, se acrescentarmos a isso o fato que entre esses há um grande número de negros, fica claro que tais ações são efetivamente racistas.

Assim podemos afirmar que há Racismo Religioso. Cabe perguntar por que, e quem tem medo, vergonha de auto declarar sua religião, ou de professar sua fé abertamente. Assim podemos concluir que os 80 por cento dos que não informaram sua religião com certeza não pertencem à religião dominante, oficial e não são pessoas brancas ou pertencentes a classes mais favorecidas. Os dados evidenciam o quanto o Brasil, a sociedade, nós somos racistas e precisamos urgentemente adotar uma educação, com postura antirracista.

Esses dados evidenciam as forças organizadas, sistematizadas pelo racismo que atuam cotidianamente e forçam um apagamento, uma desmonte, uma inviabilização, de tudo que for ligado a tradição –“saberes de uma ancestralidade negra que vive nos ritos, na fala, nos mitos, na corporalidade e nas artes de sua descendência”, enfim cuja origem for assentada na cultura e na identidade afro-brasileira. Não se trata apenas de uma violação da integridade física, mas permanentemente dá indícios de ameaças: morais, patrimoniais, simbólicas e psicossociais. Há violação dos direitos humanos.

Dionildo Campos, advogado, sacerdote de umbanda, dirige o Centro Espírita Nossa Senhora do Carmo em Cuiabá há mais de 15 anos, cita a reportagem do Mundo Negro vinculada no site dia 16 de janeiro de 2024 com o título “Intolerância religiosa representa 33% dos processos por racismo no Brasil em 2023, aponta pesquisa” onde ressalta que: levantamento feito pela JusRacial mostrando que tribunais brasileiros registraram mais de 176 mil processos por racismo em tramitação em 2023, sendo 33% deles por intolerância religiosa. Comparado a 2009, ano em que foi realizada pesquisa semelhante, houve crescimento de 17.000%.

Ele cita Hédio Silva Jr, advogado das religiões brasileiras no STF, mostrando como o preconceito religioso está em nosso cotidiano e oscila nos polos ódio-medo e conclui que a demonização dos cultos da umbanda precisa ser rechaçada com uma educação democrática e multicultural: “As democracias são corroídas diariamente pelo discurso de ódio religioso que acabou indo para a política, mas que no Brasil tem DNA em alguns templos neopentecostais cuja equação discursiva básica visa proliferar o medo, materializando nas religiões de matriz africana a figura do mal. Fora do continente africano somos o país com maior população negra e temos nosso ethos marcado tanto pelo legado civilizatório africano quanto por sua satanização”. O pai de santo Dionildo Campos lembra que: “examinando nosso dia a dia, nossa história, vemos que há muito de africanidades em nossa linguagem, em nossos gestos, em nossa luta, na arte marcial da capoeira, em nossa alimentação, em nossos costumes e em nossa tez. Ignorar isso é ignorar a própria essência, e as próprias raízes”.

Giulianna Altimari, jornalista, colunista social, sacerdotisa de Umbanda do Centro Espírita Santa Sara e São Francisco, autora do livro Rituais de Umbanda: velas e símbolos, destaca: há diversas leis que asseguram o nosso direto de expressar e frequentar qualquer religião ou não. Giulianna continua citando trechos da constituição:   “VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. E finaliza a sacerdotisa de umbanda: “Toda religião prega o amor, que amor frágil é esse que não pode ser contrariado. A minha fé é melhor que a sua, a minha igreja, o meu terreiro, meu templo é melhor, só minha religião salvaIsso é a maior estupidez e ignorância humana, significa que não apreenderam nada ainda, é uma pena.”

O Brasil é um Estado laico. As pessoas têm o direito de professar sua fé. Os terreiros são espaços sagrados, ali há produção artística, cultural, saberes ancestrais. As tecnologias e práticas ali vivenciadas estão nas mãos de guardiões culturais-religiosos (mães e pais de santo); os conhecimentos desses espaços sagrados são frutos de experiências, de filosofias e cosmovisão africanas e afro-brasileiras. Que abramos nossos olhos, ouvidos e a compreensão para valorizarmos essa riqueza material e imaterial.

*Gilda Portella, sacerdotisa de Umbanda, multiartista, historiadora/UFMT, mestranda em Estudos de Cultura Contemporânea/UFMT.

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