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Cada vez mais brasileiros veem pets como filhos, tendência criticada pelo papa

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A funcionária pública Andreza Alcântara não se considera religiosa, embora tenha sido batizada no catolicismo. Mesmo não seguindo essa religião, a gaúcha de 37 anos diz sempre ter acompanhado o papa Francisco e o admirado por sua “cabeça aberta”.

Entretanto, no dia 5 de janeiro veio uma decepção: foi quando o papa, em seus encontros com fiéis às quartas-feiras, disse haver um “determinado egoísmo” em casais que optam por não ter filhos e, ainda, têm “cães e gatos” que “ocupam o lugar do filhos”.

“Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos… Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade”, disse o papa Francisco durante a chamada audiência geral no Vaticano.

“Esta negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade”, acrescentou o pontífice.

Andreza é casada há 13 anos, quase o mesmo tempo de vida de sua “dog” (“cachorro” em inglês), como ela chama, a bull terrier Kirah, de 14.

Embora relate sofrer “muita” pressão social por isso, ela e o marido decidiram não ter filhos — humanos, porque Andreza considera Kirah sua filha.

“Eu nunca quis ter filhos. Não me vejo mãe, com a responsabilidade de criar uma pessoa, de ter que abrir mão da liberdade e da tranquilidade”, explica a funcionária pública, que vive em uma casa em Eldorado do Sul (RS) com o marido e Kirah.

“Quanto a essa fala do Papa, eu discordei. Primeiro, ele não tem filhos. E ele teria que ver que hoje não é fácil colocar uma pessoa no mundo, está tudo muito difícil. Não é procriar por procriar.”

“Esse deveria ser um tema de saúde pública em um país como o nosso, com tanta desigualdade, tanta gente passando fome. As crianças vêm ao mundo e não têm culpa de passar pelo que passam”, defende.

Andreza faz parte de uma tendência que tem sido capturada pela pesquisa anual da Comissão de Animais de Companhia (Comac) do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Saúde Animal (Sindan), a Radar Pet. O levantamento representa o universo dos lares brasileiros nas classes A, B e C e tem margem de erro de 3,6% em intervalo de confiança de 95%.

Realizada por uma consultoria, a edição de 2021 desta pesquisa mostrou que, das casas que têm cachorros, 21% delas são de casais sem filhos (contra 9% de casas com pessoas morando sozinhas e 65% de casas com filhos). Das casas que têm gatos, 25% delas são de casais sem filhos (contra 17% de casas com pessoas morando sozinhas e 55% de casas com filhos).

“Nas nossas últimas pesquisas, a gente vê que esse (grupo) casais sem filhos vem aumentando, é uma tendência”, afirmou o coordenador da Comac, Leonardo Brandão, ao apresentar os resultados da pesquisa Radar Pet 2021.

Em 2019, por exemplo, 20% dos lares com cães eram de casais sem filhos, e 22% dos domicílios com gatos eram de casais sem filhos — percentuais menores do que em 2021.

A Radar Pet 2021 mostrou ainda que o principal perfil de casas que adquiriram um gato durante a pandemia de coronavírus foi o de casais sem filhos, responsáveis por 60% das aquisições destes animais no período. Para cães, o perfil predominante foi de pessoas morando sozinhas. A pandemia foi, aliás, um momento de forte aquisição de bichinhos de estimação, segundo a pesquisa: 30% dos pets (termo em inglês para “animal de estimação”) contabilizados no estudo foram adquiridos neste período.

A pesquisa também pergunta aos donos de animais de estimação como enxergam seus pets: como filho, membro da família, amigo, companhia, bicho de estimação ou uma forma de assistência.

De 2019 para 2020, cresceram os percentuais de donos que veem seus animais como filho e membro da família e, curiosamente, diminuiu a parcela de pessoas que identificam seus pets como bichos de estimação.

Por exemplo: na Radar Pet 2019, 24% dos donos de cães os consideravam filhos; na edição de 2021, o percentual chegou a 31%. Para os gatos, o percentual ficou o mesmo nestes dois anos: 27%.

Entre 2019 e 2021, o percentual de pessoas que veem seus pets como bichos de estimação caiu de 23% para 7% entre donos de cachorros e de 29% para 13% entre donos de gatos.

Famílias ‘multiespécie’
Nas ciências humanas, essa tendência já ganhou até um nome: humanos, cães e gatos, além de outros pets, estão formando as chamadas “famílias multiespécies”.

A psicóloga Cássia Alves acaba de publicar, em dezembro de 2021, um artigo sobre o assunto, em coautoria com sua orientada na graduação, Melanie de Aguiar. As autoras consideram as famílias multiespécies aquelas em que o animal fica dentro da casa, participando da rotina da família.

Elas fizeram entrevistas em profundidade com quatro casais (três heterossexuais e um homossexual) no Rio Grande do Sul para entender a relação entre ter pets e a escolha de ter ou não filhos.

Todos entrevistados identificaram seus bichinhos como membros da família, e dois casais, como filhos. Apenas um casal já havia definido que não queria ter crianças, e os outros viam a aquisição de pets como uma etapa anterior a isso — até mesmo como “treinamento” para serem pais.

Mas as pesquisadoras observaram que, na frente de outras pessoas, esses pais de pets não se identificavam abertamente assim, algo atribuído ao preconceito social com essa mistura de papéis.

“Muitos relataram que tinham uma certa vergonha de falar na frente de outras pessoas que o pet era filho. Eles entendiam que é uma relação diferente, mas muito importante (a ligação com os pets)”, diz Alves, doutora em psicologia e professora no Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG).

Embora possa haver uma resistência na sociedade quanto ao reconhecimento dessas relações como familiares, essa demanda já está chegando à Justiça, com contratos e litígios sobre a guarda dos animais após um divórcio, por exemplo. Cartórios e serviços virtuais também já oferecem certidões de nascimento para animais de estimação.

Andreza Alcântara, “mãe” da bull terrier Kirah, diz que não chega a comemorar o dia das mães, mas anualmente prepara com o marido uma festinha de aniversário para a “dog”.

“Considero uma filha porque tem um afeto, uma troca muito amorosa. Ela é muito dependente de mim, pra onde eu vou ela vai atrás. Isso cria uma certa proteção”, explica a funcionária pública. “A gente às vezes deixa de viajar, se o lugar não aceita (animais). No máximo, se viajamos no fim de semana, alguém fica com ela.”

Andreza brinca que, quando conheceu o marido, Kirah ainda era pequena e tratada como cachorro: “Ela dormia no canil, tinha até pulga!”.

Mas com a chegada de Andreza à casa, Kirah foi se aproximando: do quintal para dentro de casa, depois para o quarto, e durante um tempo à cama. Hoje, a cadela dorme em uma caminha ao lado da cama do casal.

Kirah tem a hora de brincar e antes da pandemia tinha a rotina de todo dia ir para a casa da “avó”. Mesmo com essa agenda e exigências que podem guardar algumas semelhanças com os cuidados de uma criança, Andreza reconhece que a demanda de um pet é bem menor. Embora nunca tenha escutado comentários diretos, ela acredita que sua dedicação a Kirah pode gerar críticas externas.

“Eu não duvido que falem, principalmente as pessoas que têm filho e acham a gente exagerado, muito apegado.”

‘Pelucização’ e ‘petichismo’

A socióloga Kênia Gaedtke estudou em sua tese de doutorado a “antropormofização” dos animais de estimação, ou seja, as transformações deles em direção a algo mais próximo dos humanos.

Ela diz que as controvérsias em torno da identificação de pets como filhos se tornam mais evidentes no dia das mães, já que a grita parece ser maior em relação às “mães de pets” do que aos “pais de pets”.

Embora Gaedtke defenda que esta denominação faça parte de um processo de se repensar os conceitos de maternidade, chegando até às “mães de plantas”, ela diz ter uma postura crítica quanto a esta “antropomorfização” dos animais de estimação.

“Existem alguns conceitos como ‘pelucização’ dos animais de estimação (como se fossem animais de pelúcia), ou ‘petichisimo’ (tradução de conceito de Jean-Pierre Digard) — um fetiche com o pet como um bichinho completamente controlado: seus cheiros, instintos, vida sexual reprodutiva”, enumera Gaedtke, professora Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC).

Estas tendências caminham de mãos dadas com o consumo, em que o mercado pet é muito promissor: no Brasil, seu faturamento em 2020 foi de R$ 40,8 bilhões, segundo o Instituto Pet Brasil. Este valor inclui a atividade de pet shops, clínicas e hospitais veterinários, entre outros.

Kênia Gaedtke diz que, embora os cães e gatos sejam domesticados há milhares de anos, nos séculos mais recentes essa proximidade chegou a um formato inédito, em parte devido à urbanização.

“Existia uma função para esses animais na área agrária, então quando a gente sai do campo e vai para as cidades, eles vêm pra dentro de casa. Nessa dinâmica de uma vida cada vez mais regrada pela lógica da vida na cidade, vai aumentado a escolaridade, que é uma questão importantíssima quando a gente pensa na diminuição do número de filhos por família”, aponta a socióloga.

Cássia Alves também destaca que “muitos estudos” mostraram uma relação entre maior escolaridade e diminuição no número de filhos.

No Brasil, a taxa de fertilidade foi de 1,7 filhos por mulher em 2019, segundo dados compilados pelo Banco Mundial. Década após década, o gráfico mostra uma linha em claro decréscimo: em 1960, esta taxa no país era de 6 filhos por mulher. Uma análise de dados do Censo de 2010 mostrou também que as mulheres mais escolarizadas têm menos filhos e mais tarde. Enquanto mulheres com até 7 anos de estudo tinham em média 3,19 filhos, para aquelas com oito ou mais anos de estudo, o valor era quase a metade: 1,68 filhos por mulher.

“A entrada da mulher no mercado de trabalho foi uma transição importante, além da própria chegada da pílula anticoncepcional, dos métodos contraceptivos”, aponta Alves como mais fatores que explicam a redução no número de filhos.

Kênia Gaedtke ressalva que a relação entre não ter filhos e ter pets nem sempre é direta: muitas pessoas têm bichinhos independente da escolha de ter filhos ou não. Inclusive, o maior percentual de casas com cães e gatos segundo as pesquisas Radar Pet é daquelas com filhos — embora este grupo esteja perdendo espaço para outros perfis, como casais sem filhos e idosos.

A Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estimou que 46,1% dos lares brasileiros tinham ao menos um cachorro, o equivalente a 33,8 milhões de domicílios. Em 2013, o percentual era de 44,3%.

Quanto aos gatos, 19,3% dos lares tinha ao menos um deles, o equivalente a 14,1 milhões de casas. O percentual era de 17,7% em 2013.

Segundo as entrevistadas, a crescente presença dos animais de estimação é uma tendência em vários outros países, como os Estados Unidos.

Novas possibilidades de vida
No artigo recém-publicado por Cássia Alves e Melanie de Aguiar, as autoras relacionam a tendência das famílias multiespécies a um contexto de novas configurações familiares na contemporaneidade, como as famílias monoparentais, homoafetivas e recasadas.

“A gente não sabe como vai ser daqui para frente, mas eu entendo que essas novas configurações, por exemplo a inclusão dos pets nas famílias multiespécie, permite que as relações sejam mais efetivas, que as pessoas possam decidir o que elas querem. Efetivas no sentido da escolha do seu desejo, o que você quer para sua vida. Muitas famílias (no passado) tiveram filhos por ser algo esperado, e hoje a gente tem mais possibilidades de escolha”, diz Alves, que é mãe de um bebê e um cachorro.

“Não mais se pensa, hoje culturalmente, que o filho é a única possibilidade de trazer uma felicidade para o casal — como um destino. Hoje a gente pensa a vivência das mulheres, dos homens, para além da maternidade e da paternidade.”

Kênia Gaedtke aponta que, evidentemente, a fala do papa em 5 de janeiro se relaciona com um imaginário de que ter filhos é cumprir o “desejo de Deus”. Ela critica que “as instituições religiosas parecem dar um passo a frente e dois para trás em relação a certos progressismos”.

Na audiência geral em que criticou um “determinado egoísmo” dos casais que não têm filhos, o papa Francisco falava sobre São José, o pai putativo, e não biológico, de Jesus segundo esta fé. A partir daí, o papa defendeu a adoção de crianças e, em seguida, criticou a opção de não ter filhos.

“Peço a São José a graça de despertar as consciências e pensar nisto: em ter filhos. A paternidade e a maternidade são a plenitude da vida de uma pessoa”, disse.

Para Gaedtke, esta fala tem um viés pejorativo ao vincular ter um pet a uma ausência, uma falha em não ter filhos.

“Fiquei pensando muito no termo ‘egoísmo’ usado pelo papa. Então todas as pessoas que não têm filhos e têm cachorros e gatos foram atacadas, foram chamadas de egoístas. Que egoísmo é esse, se a gente pensar que uma pessoa sem filhos vai ter uma disponibilidade de tempo e energia muito maior para por exemplo participar de pautas coletivas. Ela pode ter uma postura profundamente altruísta e mesmo assim não ter filhos”, exemplifica a socióloga.

“Incomoda muito porque de novo a gente cai na ideia de que a lógica da vida é a da família nuclear. Como se a nossa sociabilidade, nosso lugar no mundo, não fosse muito maior do que isso. Isso me incomoda como mãe mesmo, porque eu preciso me situar no mundo também como alguém que vai participar de pautas e associações coletivas”, diz Gaedtke, mãe de uma filha pequena e sem pets.

Por: Mariana Alvim – @marianaalvim

Da BBC News Brasil em São Paulo

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