O Brasil, enfim, começa a se dar conta da gravidade do colapso que vive durante a pandemia do coronavírus. Setores econômicos, governadores, ministros do Supremo Tribunal Federal e até aliados do Governo no Congresso têm engrossado o coro na pressão por medidas nacionais mais efetivas para enfrentar a crise, que está no seu momento mais crítico e tem um dos piores indicadores do mundo. Nesta terça-feira, o país registrou mais de 2.000 mortes em 24 horas pelo segundo dia consecutivo. Durante a semana, ultrapassou os Estados Unidos na média de óbitos diários pela primeira vez durante a segunda onda. Lançado a epicentro global após uma série de falhas no combate à crise, o Brasil vê seus sistemas de saúde na iminência de colapsar ou já colapsados em quase todo o seu território. Governadores, o Ministério da Saúde e até o Judiciário vêm pregando “união” para enfrentar a “guerra” contra o vírus, mas não conseguem afinar os discursos em uma direção comum para mitigar a pandemia. Hesitantes sobre os custos políticos e econômicos de confinamentos mais rígidos, os chefes dos Executivos estaduais sofrem com a oposição direta do Planalto, que oscila entre discursos e ações isoladas pró-vacinação com novas aparições negacionistas do presidente Jair Bolsonaro.
Encurralado pela pressão de distintos setores por vacinas e pelas críticas feitas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na gestão da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro apareceu de máscara, acenou em prol da vacinação depois de meses de discursos antivacina e… ficou por aí. Segue criticando o lockdown ―medida apontada pela ciência como eficaz para frear o contágio quando não há tratamento eficaz contra a covid-19 nem vacinação em massa― enquanto é cobrado por ao menos 22 governadores por um pacto nacional junto com o Congresso e o Judiciário que inclua a centralização das impopulares medidas restritivas, fundamentais para reduzir os graves índices da pandemia. Bolsonaro criticou o toque de recolher decretado Distrito Federal e disse que só o presidente poderia adotar uma ação como esta. “Eles (prefeitos e governadores) não querem salvar vidas, querem poder”, bradou Bolsonaro nesta quinta (11).
Os governadores pedem uma pactuação conjunta, o que poderia diluir o ônus político de restrições mais duras em um momento econômico difícil e quando o auxílio emergencial, ainda pendente de recriação, deve voltar em um valor inferior ao do ano passado. A maioria deles entende que quarentenas mais rígidas é o que pode estancar as hospitalizações neste momento em que há milhares de brasileiros na fila de espera por uma vaga de UTI em várias regiões. Mas, sem o protagonismo federal, tem optado por aumentar as restrições aos poucos nos Estados. Até agora, as principais ações vão no sentido do fechamento do comércio não essencial e de toques de recolher à noite ―medidas consideradas insuficientes por especialistas diante do crescimento exponencial de infecções no país.
Nesta quarta, o governador de São Paulo, João Doria criou uma nova fase emergencial para aumentar as restrições, já que havia tornado mais brandas a fase mais crítica do seu plano de reabertura, a vermelha. Determinou toque de recolher entre 20h e 5h e restringiu igrejas, praias, parques e eventos esportivos depois de semanas tentando protelar as medidas impopulares. O Estado que concentra a melhor estrutura hospitalar do país já viu 53 municípios colapsarem. A ocupação geral dos leitos de UTI chegou a 87,6%, e as autoridades sanitárias têm afirmado categoricamente que não conseguem abrir leitos na mesma velocidade do contágio e que o risco de colapso geral é real.
Enquanto anunciava as medidas, Doria aproveitou para criticar o vizinho Rio de Janeiro por suas medidas mais brandas. “Lamento que ao invés de ter medidas que restrinjam, e com isso protejam a sua população, façam exatamente o caminho oposto”, disse. A cidade do Rio de Janeiro até prorrogou o decreto, mas ampliou, por exemplo, horários de funcionamento de bares e restaurantes. O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, que não assinou a carta dos governadores pelo pacto nacional, revidou: “Reconheço sua liderança, mas acho que está fora do tom. Espero que sua atitude não seja reflexo do novo cenário eleitoral, e sim por conta do aumento de casos da covid-19″.
As discordâncias sobre a condução da crise permeiam vários entes da federação. O ministro Eduardo Pazuello, que vinha modulando o discurso e pedindo união na “guerra” contra o vírus, gravou um vídeo no qual diz que a situação brasileira é grave, mas o país “não entrou nem vai entrar em colapso”. A declaração caiu mal entre os governadores, que vêm assumindo limitações para abrir leitos enquanto as filas por eles crescem e reclamando que a União deixou de cumprir com sua parte no custeio dessas estruturas. Eles pedem apoio com medidas restritivas, com a ampliação de leitos e a interferência federal para a compra de medicamentos do chamado kit intubação. Trata-se de sedativos e remédios usados nas UTIs, cujos preços estariam subindo vertiginosamente em meio à disputa entre governadores e prefeitos para comprá-los.
O coordenador de vacinas do Fórum Nacional de Governadores, Welington Dias (Piauí), rebateu diretamente o ministro. “Neste instante estamos dentro de um colapso nacional na rede hospitalar”, apontou, acrescentando que há milhares de brasileiros esperando vagas em leitos clínicos e de terapia intensiva neste momento. “Tem gente morrendo sem respirador.” O secretário-executivo do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), Jurandir Frutuoso, desabafou no Twitter: “Chegamos ao limite das nossas forças e da capacidade de resposta do sistema de saúde. E não me venham dizer que não nos preparamos. Realmente não nos preparamos para ver tanta negação de uma doença nova e grave”.
Governadores ainda cobram que a União volte a custear leitos de UTI neste momento crítico, o que não aconteceu nem mesmo após sucessivas decisões judiciais no Supremo Tribunal Federal. A pressão por ações de combate à pandemia ganhou corpo até no Judiciário. A ministra Rosa Weber, autora de parte das decisões sobre os leitos, afirmou que é “incompreensível a recusa da União” em assumir o “protagonismo” na pandemia. O ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, afirmou que a compra de vacinas não é nenhum favor do Governo. O presidente do STF, Luiz Fux, aproveitou o marco de um ano deste que a OMS declarou oficialmente a pandemia do coronavírus, para comentar a situação do país. “O Brasil vive seu quadro mais crítico desde março de 2020″, disse. Defendeu que o país precisa mais do que nunca de diálogo entre todos os setores, os três poderes da República e os três entes da federação. “Não temos tempo a perder”, apontou.
Fux aproveitou para destacar que a Corte Suprema brasileira reforçou no começo da crise a competência da União, dos Estados e dos municípios pela concretização de políticas públicas de combate à pandemia. Várias vezes, Bolsonaro afirmou que o STF havia decidido que somente governadores e prefeitos poderiam agir e que a ele cabia transferir recursos, o que não é verdade. A narrativa bolsonarista foi reverberada mais uma vez nesta quinta pelo chanceler Ernesto Araújo no Twitter. O ministro Gilmar Mendes o acusou de espalhar fake news. “Este é o fato real: a Suprema Corte decidiu que os Governos federal, estadual e municipal têm competência para adotar medidas de distanciamento social. Todos os níveis de Governo são responsáveis pelo desastre que enfrentamos.”
Fonte: El País