Único realizador brasileiro com uma longa-metragem em competição no 69º Festival de San Sebastián, o estreante Madiano Marcheti, nascido na cidade de Porto dos Gaúchos, no norte de Mato Grosso, vem devastando a inércia de plateias internacionais em relação ao crime da transfobia a cada projeção de “Madalena” pelo mundo”.
De janeiro, quando Roterdã promoveu sua primeira projeção internacional, até este sábado, 18, quando será exibido em concurso na seleção Horizontes Latinos de San Sebastián, na Espanha, Madalena, longa de estreia do mato-grossense Madiano Marcheti, já correu 13 festivais pelo mundo, conquistando prêmios na Turquia e no Peru.
Por onde passa, sua abordagem à la Rashomon para a transfobia incentiva discussões. Como no cult de Akira Kurosawa de 1951, há diferentes perspectivas sobre um crime. E cada uma desnuda um pouco da intolerância brasileira. Rodado em Dourados e Bonito, em Mato Grosso do Sul, em novembro e dezembro de 2018, o filme vem ganhando elogios como um documento contra o preconceito.
Orçado em 1,9 milhões de reais (307 mil euros), com investimento único do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e apoio local do Governo do Mato Grosso do Sul, “Madalena” foi filmado em Dourados e Bonito, no Mato Grosso do Sul, em novembro e dezembro de 2018.
Radicado em Maputo, Moçambique, Madiano resvala no terreno da geopolítica ao conversar com o C7nema sobre um dos filmes brasileiros mais disputados (e elogiados) do ano.
Qual é a dimensão “física” do silêncio em um processo de observação (ou de escuta) acerca da transfobia como temos no filme “Madalena”?
O silêncio tem uma importância monumental na construção de “Madalena” por alguns motivos. Há uma vontade estética de aproximar o espectador de uma espacialidade muito específica da região Centro-Oeste do Brasil, ainda muito pouco representada na cinematografia nacional. Tenho 32 anos e, durante toda minha vida em Mato Grosso, cresci vendo a paisagem mudar ao redor da cidade onde vivia. As florestas foram substituídas por gigantescas plantações de soja, milho e algodão. Mesmo muito familiarizado com essa nova paisagem, por acompanhar a transformação, ainda assim fico sempre chocado quando me deparo com aquele vazio sem fim. Tentei trazer este sentimento para cada imagem que mostra plantações de soja no filme. E tentei trazê-lo principalmente através dos sons daquele lugar, que é um som rarefeito e económico, devido à quase total ausência de vida (animais e uma variedade de plantas) em meio às plantações.
Mas há também uma dimensão narrativa do silêncio que me parece importante pontuar. “Madalena” é um filme que lança ao espectador uma pergunta clara: o que estamos a fazer de errado como sociedade ao permitir e negligenciar a violência contra pessoas LGBTQIA+, em especial contra as pessoas trans? Narrativamente, o filme fala sobre isso a partir de lacunas, de ausências e de silêncios. Observamos a reação de algumas personagens diante de um crime contra uma pessoa trans. Alguns simplesmente não agem. Outros agem, mas a partir de uma motivação autocentrada, pensando nos impactos que aquele facto poderia ter sobre si. A reação apática, permissiva ou negligente desses personagens é potencializada com o peso do silêncio. Pois não se fala sobre o crime, não se investiga, não se busca um criminoso e nem interessa buscar, e, além disso, não se enluta aquela morte por parte desta categoria de personagens. Há um silêncio narrativo nesse sentido, em evitar tais caminhos. É uma escolha estética e política que pode causar certo desconforto, mas que, de alguma forma, acredito refletir como parte da sociedade se posiciona (ou não se posiciona) e olha para esse tipo de crime transfóbico no Brasil.
Qual seria o prisma de solidão que guia o filme? E o quanto essa solidão reflete uma condição social – e mesmo existencial – do Brasil de hoje?
Sinto que além de solidão, existe uma ideia e uma sensação de desilusão bem marcada em algumas personagens do filme. De alguma forma, eles se veem paralisados e sem saída para um futuro já determinado. Luziane, a garota que vive na periferia, tem trabalhos efémeros e não vê um futuro mais sólido para além do lugar onde está. Cristiano, o filho de fazendeiro que, mesmo com dúvidas sobre o seu futuro, não consegue vislumbrar para si outra possibilidade que não seja a de assumir os negócios da família. São duas personagens de classes sociais distintas, mas que se sentem presos e, de formas diferentes, desiludidos com um futuro naquela cidade, uma cidade movida pela lógica do agronegócio do qual não parecem ser capazes de escapar. Para além de refletir sobre a condição social de cada um e a um certo estado de espírito ligado à desilusão que parte do Brasil vive agora, esses dois personagens tomados por apatia ou pela ausência de empatia encarnam a complexidade da condição de boa parte do brasileiro em relação à violência contra pessoas trans. Ao não tomarmos posição, ao não agirmos, ao assumirmos que o problema dos assassinatos transfóbicos não nos compete por sermos pessoas cisgéneras, normalizamos a violência contra as pessoas trans e, assim, assumimos um papel importante nesse problema, o de cúmplices. Esses crimes existem da forma que existem porque nós permitimos que existam. A personagem Luziane não age quando se dá conta do desaparecimento de Madalena. A apatia de Luziane a esse facto tem como base a normalização, por parte da sociedade, de que o desaparecimento ou assassinato de mulheres trans seria algo naturalmente vislumbrável ao longo da vida dessas pessoas. Quando Cristiano precisa se posicionar em relação ao corpo que encontra em sua fazenda, ele prioriza a propriedade, a relação com a sua família (mesmo que complicada), e a vida pública e política de sua mãe. Por ser privilegiado e, portanto, protegido, ele pode fazer essa escolha absurda de tentar se livrar do corpo de uma pessoa trans sem medo das consequências.
De que maneira o seu universo de pontos de vista distintos, mas complementares, dialoga com os procedimentos do cinema documental?
A narrativa de “Madalena” é sustentada sobre múltiplos pontos de vista porque somos guiados por três protagonistas. Mas gosto de pensar na ideia de que esses pontos de vista são tão diversos, que eles extrapolam os pontos de vistas desses três. Os animais, a plantação de soja, a floresta, as máquinas são todas personagens importantes na história. Além de significado, criam tensão. No processo de escolhas em relação à imagem e à encenação, ao formato de tela, sempre tentei levar em conta esses aspectos. Por mais que a gente acompanhe a história com certo afastamento (principalmente na primeira e na segunda parte), muito pelas bordas, por meio das pistas que nos são dadas, das lacunas que nos são oferecidas para serem preenchidas, ainda assim, não penso o filme como tendo uma abordagem que dialoga diretamente com a estética ou os procedimentos do que se imagina mais classicamente como cinema documental.
Absolutamente tudo em Madalena é ficcionalizado. Há duas vontades estéticas colocadas. A primeira é a vontade de explorar os mais diversos elementos visuais e sonoros, a fim de criar uma atmosfera capaz de nos transpor para aquele lugar do qual sou muito familiarizado. Atmosfera essa que consiga transmitir a sensação de que há algo de estranho ali, de que naquele lugar, principalmente nas plantações de soja, existe algo de hostil, um perigo iminente. Pode-se dizer que há alguma coisa de cinema de género nessa abordagem, um flerte com o suspense ou mesmo com o terror. E, por outro lado, há uma vontade de mostrar as dinâmicas sociais específicas desse lugar, como as coisas funcionam ali, como o agronegócio impacta a vida das pessoas e do restante da natureza naquela cidade. E nesse sentido, há uma câmara mais atenta ao quotidiano das personagens.
Qual é a dimensão política de um filme que expõe a violência da transfobia no Brasil de hoje?
É muito triste testemunhar este momento, em que a política brasileira é alimentada pelo medo e desinformação, gerando a paranóia coletiva e mesmo violência – inclusive contra a população LGBTQIA+. Por isso, é muito importante a safra de filmes brasileiros que trazem personagens trans, que contam histórias sobre trajetórias de pessoas trans ou que principalmente são criadas por pessoas trans. Ainda assim, isso não é o suficiente para modificar todo um sistema histórico de opressão machista e transfóbica de uma hora para outra. Além de filmes, precisamos discutir e avançar sobre esses temas na escola, nos espaços de trabalho, na família, nas igrejas, nas leis, nas políticas de saúde pública etc. Assim, quem sabe, as pessoas trans passem a ser respeitadas em mais espaços. Consigam, assim, entrar e permanecer no sistema educacional, ter acesso às oportunidades do mercado de trabalho sem empecilhos, não tenham que enfrentar estigmas e dificuldades para se relacionar amorosamente e serem amadas e acolhidas por suas famílias.
Existiria um “projeto” cinematográfico, qual um pólo, no Centro-Oeste? Como seria? Que cineastas daí hoje ecoam com uma produção regional/universal?
No Brasil de agora, não consigo observar nenhum projeto cultural possível que não seja o de resistência e salvação do cinema nacional. Pois o que está dado é que há um projeto muito bem definido, do atual governo, que busca corroer as instituições culturais, as políticas de apoio à cultura e a total paralisação de editais nacionais de suporte à cultura, em especial ao cinema, que é uma arte tão custosa. Nesse sentido, todo esforço de mobilização para o fortalecimento e resistência do nosso setor é fundamental. Mesmo com o incentivo federal que o cinema teve anos atrás, uma cena cinematográfica em Mato Grosso, estado de onde venho, não conseguiu se erguer com força. Há inúmeros fatores que ajudam a criar o ambiente para que um pólo surja em determinada região. Mas acredito que é preciso, principalmente, haver um esforço de política pública voltada para isso. Existem pessoas talentosíssimas em Mato Grosso, cheias de vontade e amor por cinema. Mas, infelizmente, isso não é o suficiente para que um pólo cinematográfico se crie e se sustente. O apoio público é fundamental para que isso possa florescer e progressivamente expandir, trazendo não só riqueza no sentido cultural, mas também contribuindo para a economia.
Redação/c7nema/Estadão
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