Mesmo ocorrendo em séculos diferentes, a historiadora destaca que as doenças trouxeram um grande apelo a Deus e também despertaram o negacionismo em parte da população.
Na data em que completa seus 302 anos, Cuiabá vive um pico de mortes causado pela pandemia do novo coronavírus. Este cenário de óbitos por uma mesma doença e medo se assemelha ao vivído no século XIX, com a chegada da epidemia de varíola na Capital. É o que aponta a historiadora Else Cavalcante.
A varíola foi a doença que há um século e meio abateu Cuiabá e matou cerca de 4 mil pessoas em apenas um ano.
De 1867 a 1868, a doença dizimou cerca de um terço da população viva na época. De forma tão significativa quanto, os cuiabanos hoje enfrentam a Covid-19 em seu novo pico, que já levou a vida de mais de 1,7 mil cuiabanos.
Mesmo ocorrendo em séculos diferentes, a historiadora destaca que as doenças trouxeram um grande apelo a Deus e também despertaram o negacionismo em parte da população.
Autora do livro “História das doenças em Mato Grosso no século XIX”, Else afirma que o sentimento de medo também foi algo que se destaca nos dois cenários de crise sanitária. Assim como hoje, em 1867 todos estavam receosos de serem infectados pela varíola e tinham horror em pensar na perda dos entes queridos.
Ao revisitar o passado, a pesquisadora conta que os médicos que atuavam em Cuiabá acreditavam que a varíola não poderia chegar a Mato Grosso. Isto porque havia uma crença de que a doença não se alastrava por terras tão quentes como as da Capital.
No entanto, a realidade se mostrou completamente diferente, e esta suposição foi um dos fatores que contribuiu para que a contaminação atingisse estágio epidêmico, fase responsável por infectar grandes quantidades de pessoas em pouco tempo.
“O que levou a epidemia de varíola tomar conta da cidade de Cuiabá e atingir outas cidades de Mato Grosso foi a demora no diagnóstico dos soldados que foram contaminados na guerra do Paraguai. Os médicos da Santa Casa não conseguiam fazer o diagnóstico da doença. Quando eles descobriram era tarde demais, os soldados haviam falecido e a doença havia se disseminado”, conta ela em entrevista ao MidiaNews.
Quanto mais a doença se alastrava, mais o sentimento de medo também crescia.
Como válvula de escape, o povo recorria ao apelo a Deus, transparecendo suas angústias em procissões pela cidade.
Como no século XIX viviasse no império, a população era essencialmente católica, por isso povo e o então Bispo de Cuiabá, Dom José Antonio dos Reis, acreditavam que a epidemia era um castigo divino.
Muito semelhante ao século passado, hoje vemos famílias e fieis reunidos nas portas dos hospitais clamando pela vida daqueles que se encontram internados após contraírem a Covid-19. Vídeos que circulam pela internet mostram esses momentos em que a fé se torna o único meio para tentar ajudar quem passa pelo momento difícil.
Negacionismo
Outra semelhança apontada por Else era a negação que existia na época em relação à vacina. Diferente da pandemia do novo coronavírus, quando a varíola matou grande parte da população já existia uma vacina para combater a doença, porém os cuiabanos se negavam a tomá-la.
“Essa vacina quase não chegava ao Estado e havia medo e resistência a se tomá-la. Ela era produzida a partir de experimentos com boi e as pessoas acreditavam que se você tomasse uma vacina que tivesse elementos básicos vindos de um animal poderia aparecer no seu corpo rabo e chifre”, disse a historiadora.
Como também não havia tanto acesso à vacina na província mato-grossense, foi necessário que as autoridades políticas da época tomassem medidas de isolamento assim como as que vemos hoje em vigor na Capital.
Pelo atraso na descoberta que se tratava de uma epidemia de varíola, o presidente da província, Couto Magalhães, precisou tomar decisões rápidas para evitar a crescente de mortes na cidade.
Além do apelo para a população evitar sair de casa, Couto Magalhães construiu um acampamento do outro lado do Rio Cuiabá para abrigar os contaminados, já que a única unidade de saúde que tratava da doença era o Hospital Santa Casa.
O político também construiu um cemitério exclusivo para enterrar aqueles que faleciam de varíola, hoje conhecido como Cemitério do Cae Cae.
Apesar das medidas, Else relata que, assim como hoje, havia parte da população que não seguia as recomendações contra a disseminação da varíola. A negação em relação a gravidade da epidemia em Cuiabá fazia com que muitos resistissem a qualquer imposição das autoridades políticas.
A pesquisadora explica que era quase exatamente como vemos hoje, com grupos de pessoas aglomerando mesmo em meio a explosão de casos de Covid no Estado.
“Eles não seguiam a risca, porque faz parte do ser humano a resistência, junto com a ordem, existe o grupo da desordem. Porém agora é uma calamidade pública, por isso temos um código de leis punindo. É a ideia do bem coletivo. É preciso pensar no coletivo e naquela época foi pensado também desta forma”, afirma.
A medicina do século XIX
Vemos no século XXI a medicina moderna e evoluída em um momento de colapso geral. Quase não há UTIs disponíveis em Cuiabá, por isso pacientes com Covid-19 fazem filas para conseguir uma vaga e até mesmo suplementos médicos essenciais, como oxigênio, ameaçam acabar por conta do colapso na saúde.
Mais de 150 anos antes a saúde na Capital também se mostrava precarizada, porém em termos que tornavam quase impossível o tratamento de todos os pacientes contaminados pela varíola.
Else conta que em 1867, pouquíssimos médicos atuavam na província e, diferente de hoje, só haviam três unidades de saúde, sendo elas o Hospital Militar, a Santa Casa de Cuiabá e o hospital especializado em tratamento de hanseníase.
“Pelo número reduzido de médicos, as parteiras e as benzedeiras também eram solicitadas. Essa medicina não científica era procurada pelas pessoas que tentavam encontrar um chá ou tratamentos ligados a natureza para tentar controlar a varíola e outros tipos de doença”, explica.
À época também não existiam todas as variedades de exames disponíveis hoje, o que levava a um processo mais lento de diagnóstico de qualquer tipo de doença. Por isso, o médico precisava estar constantemente atento aos sintomas do paciente.
Medicamentos eram feitos de forma natural, e não era possível comprá-los já prontos nas prateleiras. A pesquisadora descreve que as receitas de remédio eram hoje como uma receita de bolo, em que o médico prescrevia cada grama de ervas e substâncias que o boticário, hoje denominado farmacêutico, precisaria para compor o remédio que o paciente deveria tomar.
O número de mortes
Estima-se que neste período morreram 4 mil pessoas na Capital em decorrência da varíola. No entanto, Else explica que esse é apenas um levantamento por baixo dos reais números de mortes.
Isso porque, pela saúde precária da época, não havia um controle real do número de pessoas que morriam ou eram infectadas pela varíola. Desta forma, o número da epidemia pode ser muito maior.
“Não tinha esse controle, não havia atendimento em hospitais suficientes e havia a mentalidade que hospital era lugar de gente pobre. Não fazia parte da política do império essa preocupação. Sem falar que Mato Grosso era uma província pobre e para melhorar a saúde precisaria haver investimento”, explica.
A falta de controle fez com que muitas pessoas fossem enterradas pelos próprios familiares nos jardins de suas casas.
Àqueles que morriam no hospital eram enterrados em valas comuns no Cemitério do Cae Cae e os entes queridos não podiam nem mesmo levar flores ou visitar pelo mínimo de tempo possível. Em relatos de familiares colhidos pela pesquisadora, ela diz que, apenas após a epidemia ser controlada, os familiares puderam homenagear os parentes falecidos.
Parecia impossível imaginar que algo desta mesma magnitude poderia assolar a população cuiabana novamente. Porém, mais de um século e meio depois a história se repetiu. Mesmo com toda a evolução científica, a melhora nos registros de dados sobre a doença e com a vacina produzida, o que vemos após um ano de pandemia do novo coronavírus é um cenário ainda pior do que no início de 2020.
Por causa disto, a pesquisadora destaca que é imprescindível conhecer e aprender com o passado, para que catastrofes possam ser evitadas no futuro.
“Tudo que aconteceu no passado nos serve de lição e podemos aprender a partir disso. Essa memória não deve ser esquecida, deve ser passada por gerações para que lá na frente a gente cometa menos erros. Quantas e quantas epidemias já assolaram a humanidade? É preciso aprender com o passado para errar menos no futuro”, finaliza.
VITÓRIA GOMES/midianews