A quantidade de brasileiros com autorização para ter uma arma de fogo cresceu 566% nos últimos quatro anos. Os dados foram divulgados nesta quinta-feira (20), no anuário do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Em 2018, o país contava com 117.467 registros de CAC (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador) no Exército brasileiro. O número subiu de forma vertiginosa para 783.385, em 2022.
Chama atenção também o aumento do número de armas em circulação registradas pelo Sinarm (Sistema Nacional de Armas). Segundo os dados da Polícia Federal, compilados pelo FBSP, 637.972 armas estavam com registro ativo em 2017, no governo de Michel Temer.
No último ano da gestão de Jair Bolsonaro (2022), o número atingiu o pico de 2.300.178 – um aumento de 260%.
Para o policial federal e membro do Conselho de Administração do FBSP, Roberto Uchôa, a corrida armamentista no país começou durante o governo Temer, com a criação do porte de trânsito.
A medida permitia aos CACs que fossem dos locais onde estavam seus acervos até clubes de tiro ou locais de caça com uma arma municiada e pronta para uso – sem especificar o trajeto. Essa novidade atraiu muitas pessoas, que viram uma oportunidade de circular armadas pelas ruas.
Com a chegada de Jair Bolsonaro (PL) ao poder, várias medidas foram editadas com o objetivo de facilitar a aquisição de grandes quantidades de armas e munições. Também foi liberado o acesso a armas de calibres que até então eram restritos a forças de segurança e militares.
Ao R7, o membro do Conselho de Administração do FBSP afirma que não é apenas a quantidade de armas em circulação que deve despertar a preocupação das organizações civis e dos governos estaduais e federal, mas também o tipo de calibre, ou seja, o potencial de destruição.
Nos últimos quatro anos, foi facilitado, por exemplo, o acesso a pistolas de calibre 9 mm e revólveres de calibre 357, além de alguns modelos de fuzis. Um atirador desportivo sozinho também podia adquirir, no governo anterior, até 60 armas de fogo: 30 de calibres permitidos e 30 restritos — uma quantidade maior que a maioria dos batalhões de Polícia Militar e delegacias existentes no país.
Neste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um decreto que revogou as normas do governo de Jair Bolsonaro (PL) que ampliavam o acesso a armas de fogo e munições. A medida suspendeu novos registros de CACs e reduziu o limite para a compra de armas e munições de uso permitido, além de novos registros de clubes de tiro.
Consequências em longo prazo
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública lembra que armas de fogo são bens duráveis e que podem continuar em funcionamento por décadas. Ainda é difícil mensurar as consequências que mais de 1,6 milhão de novas armas em circulação no país — adquiridas nos últimos cinco anos — vão trazer para a sociedade e a segurança pública.
“Hoje você ainda tem apreensão de armas e cometimento de crimes com armas que entraram em circulação na década de 80 e 90, quando não era obrigatório ter o registro. A gente viveu nessa época uma corrida armamentista que pode ser um paralelo com o que aconteceu nos últimos quatro anos”, compara Uchôa.
Especialistas em segurança pública também afirmam que a tendência do aumento de armas em circulação entre civis em médio e longo prazo é provocar o crescimento do número de homicídios. O fácil acesso ao armamento está diretamente relacionado ao escalonamento da violência. Brigas de trânsito e bate-bocas podem terminar em assassinato.
O auxiliar de estoque Ricardo de Oliveira Penha Soares perdeu a vida, em 2021, após uma briga de trânsito em Suzano, na Grande São Paulo. Ele dirigia seu carro — acompanhado da esposa e do filho de 5 meses — quando um motorista quase bateu na lateral. Ao tentar conversar com o condutor, ele foi baleado no pescoço e morreu.
Há também o risco de aumento do número de suicídios, mortes provocadas por acidentes domésticos, principalmente com crianças, e crimes de violência contra as mulheres. Em agosto de 2022, um menino de 8 anos matou com um tiro acidental o cunhado de 27 — que tinha registro CAC — quando manuseava a arma dele em Jacareí, no interior de São Paulo.
Mercado legal e ilegal
Segundo o pesquisador Roberto Uchôa, existe uma conexão entre os mercados legal e ilegal brasileiros, pois de 60% a 70% do armamento utilizado em crimes são de origem nacional — isto é, muitas armas legais são desviadas de instituições públicas ou furtadas da residência de civis e de empresas privadas e terminam nas mãos de criminosos.
“O problema é que agora entraram em circulação mais de 1,5 milhão de armas. Então, a tendência é que a gente também tenha um aumento dessa conexão, além da utilização de laranjas para a aquisição de armas e criminosos que se registram como CACs”, explica.
“Com base nas minhas pesquisas, dos mais de 900 mil [CACs ativos], 10% de fato querem praticar o esporte, enquanto 90% são pessoas interessadas nas armas e nas munições. Entre esses percentuais, aos poucos, estamos descobrindo que há organizações criminosas aproveitando essas facilidades para adquirir armas”, revela o membro do Conselho de Administração do FBSP.
Os dados do anuário também apontam uma discrepância no valor das armas. Um fuzil tem o preço estimado em R$ 70 mil no mercado ilegal, enquanto o mesmo item chegou a ser vendido por R$ 15 mil no mercado legal. Os valores acabam atraindo, segundo a pesquisa, as organizações criminosas.
Qual é a origem das armas?
A questão da origem das armas não é uma preocupação das instituições policiais, principalmente as estaduais. Quando um traficante é preso, a investigação é realizada somente para descobrir o funcionamento do tráfico de drogas, enquanto a procedência das armas é ignorada, explica Uchôa.
“A arma sempre fica como item apreendido, mas ela nunca se torna foco de investigação principal. Dessa forma, a gente não consegue saber a forma como elas estão chegando. Apenas dois estados têm delegacia especializada para isso: Espírito Santo e Rio de Janeiro”, afirma.
Como o tráfico de armas é um crime interestadual e, em muitos casos, internacional, é essencial o trabalho em conjunto da Polícia Civil e das instituições de segurança pública dos países vizinhos.
O membro do Conselho de Administração do FBSP ainda ressalta que a indústria armamentista brasileira deve participar do debate, além de colaborar com as autoridades, sob pena de sofrer sanções em caso de recusa.
Da Redação/com R7