No ano de 2001 o mundo se abalou com os ataques terroristas, organizados pela Al-Qaeda contra os EUA. Quatro aviões foram sequestrados e lançados contra o World Trade Center ou Torres Gêmeas, em Nova Iorque e contra o Pentágono. A ação matou todos a bordo, além de pessoas que trabalhavam nas áreas atingidas, contabilizando 2.996 mortos.
A tragédia abalou o mundo, a ação foi televisionada e assistíamos a tudo atônitos. O mundo ficou enlutado e não podia ser diferente, mas o que intriga hoje é como, vivendo uma tragédia de proporções mundiais, as mortes parecem ter parado de causar perplexidade no nosso país?!
E isso é constatado pela falta de respeito, de solidariedade em diversos discursos e práticas, no desrespeito às normas de segurança em diferentes cenas cotidianas de aglomeração e ausência do uso de máscaras, por exemplo.
No Brasil, com a covid-19 sem freio, é como se estivéssemos passando por esse ataque terrorista diariamente, inclusive, com uma sequência de vários dias nessa média. Ontem (21/04) foram 3.472 óbitos de acordo com o Ministério da Saúde.
No país a taxa de mortalidade ficou em 181.5, o que significa que a cada 100 mil habitantes, 181.5 morrem. Em Mato Grosso essa taxa é muito pior, fechamos ontem em 262.3. Nosso Estado tem mantido números altos, revezado entre o terceiro ou quarto piores lugares entre as Unidades Federativas.
Mas o que nos chama à reflexão agora é perceber como a falta de assombro ou empatia parecem ter contaminado a nossa sociedade. Inicialmente eram os mais idosos que estavam perecendo e ouvíamos coisas do tipo “a morte dos mais velhos é natural” ou “essa é a lei dos mais fracos”! Como se as pessoas que estavam morrendo, independente de suas idades, não tivessem importância.
Na atual fase que o país vivencia, não há mais faixa-etária “priorizada” pela doença. O vírus está bem democrático, estão morrendo pessoas de diferentes idades, inclusive, gestantes que estão deixando órfãos ainda no ventre. Talvez hoje, no meio desses escombros sociais, não se tenha ainda a dimensão da tragédia emocional que estamos vivendo e ainda perdurará.
Quantos órfãos de poucos meses há, digamos, pessoas na faixa de 20 anos o Brasil tem produzido? Quanta dor e saudade as pessoas têm sentido? Quantas pessoas perderam seus pilares familiares, tanto como representação afetiva quanto econômica? Em quanta indiferença estamos chafurdados? Infelizmente, não temos como contabilizar essa dor. Porque talvez assim, pudéssemos mostrar o seu alcance.
Cada ser humano que morre faz parte de uma história, que entrelaça diversas outras vidas: são afetos, sonhos e famílias que se perpassam, e agora se perdem e se destrói.
Segundo dados divulgados em 2019 pelo IBGE, no Brasil eram 69 milhões de famílias, com média de 3 pessoas por moradia. Assim, se formos analisar de forma rasa, estatisticamente, uma pessoa que morre no Brasil, afeta diretamente pelo menos mais outras duas – 3 mil mortes geram dor em pelo menos mais seis mil pessoas, isso por dia!
Mas o luto não é uma dor pontual, não é algo que dá e passa ou que se tome um comprimido e fica tudo bem. É um processo que leva meses ou anos para abrandar o sofrimento. Ainda mais em circunstâncias tão complexas como a que vivemos, onde não se pode velar o ente que se perde.
Esse luto é ainda mais complexo, o cérebro não processa a perda porque não registra: não se vê o corpo, não se chora diante dele, não se vê fechar o caixão! Muitas vezes a despedida é impossível devido á distâncias. E hoje, quantos casos sabemos de pessoas dentro de uma mesma família que morrem com diferença de poucos dias! Imagine o que isso causa internamente a um ser humano…
Essa tragédia toda vem gerando muitos traumas, cada dia aumenta o número de deprimidos, ansiosos e “sequelados” de várias ordens. Porque também não podemos esquecer-nos daqueles que sobrevivem à doença, mas que a narrativa dominante chama de “recuperados” da covid, isso praticamente não existe! Tanto pessoas que tiveram casos leves como graves têm desenvolvido sequelas, das mais variadas formas. Muitas pessoas precisarão de acompanhamento sistemático, médico e/ ou psicológico, por anos.
Hoje não existe ninguém que não conheça uma pessoa que morreu devido a Covid, mesmo fora da família. Ver um amigo, colega ou vizinho sofrendo não pode deixar de nos afetar. Está tudo muito errado na condução dessa doença, seja na gestão, coordenação, principalmente nacional, mas a relação individual e coletiva da sociedade com a dor da perda nessa pandemia, também está muito comprometida.
Anos atrás jamais aceitaríamos que 3 mil pessoas morressem nesse país, assim, sem assistência adequada, por pura perversidade ou ignorância, baseada em mentiras e negações. Vozes seriam levantadas, bandeiras empunhadas contra todo tipo de abuso e negligência, que hoje, parece ter se normalizado e “anestesiado” sentimentos e corações.
Quando vemos gente chorando, sofrendo, buscando esclarecer, defender a ciência, pedindo que as pessoas se cuidem, usem máscaras ou mantenham o distanciamento, estamos vendo pessoas sofridas, esgotadas, mas sãs, conscientes do que esse país vive. Estejamos então exaustos e exaustas, mas nunca a favor da cegueira ou do embotado emocional, pois é a indignação que promove a transformação.
Luciana Oliveira Pereira é jornalista em Cuiabá DRT/ MT 02329