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Os perigos da chegada do coronavírus ao país mais pobre das Américas

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Como se não bastassem um terremoto de grande magnitude, cólera, dengue, furacões, falta d’água, pobreza, saúde precária, desnutrição, violência, instabilidade política, corrupção e insegurança, o Haiti enfrenta agora o mesmo inimigo do restante do planeta: o coronavírus.

Na noite de quinta-feira, 19 de março, a nação mais pobre do hemisfério ocidental registrou os dois primeiros casos da covid-19 e desde então decretou um estado de emergência para tentar impedir a propagação de uma pandemia que no mundo já deixou mais de 20 mil mortos. Até dia 28, eram 8 casos confirmados no país.

“Escolas, centros de treinamento vocacional, universidades serão fechadas a partir desta sexta-feira (20 de março). O governo declara um toque de recolher em todo o país entre 20h e 05h desta sexta-feira”, anunciou o presidente, Jovenel Moïse.

O país do Caribe, que ainda tenta se recuperar de um terremoto que devastou o pouco que havia em 2010, fechou suas fronteiras e cancelou quase todos os voos há duas semanas para conter a chegada do vírus.

Enquanto novos casos apareciam e se multiplicavam em quase todo o planeta, o Haiti aparecia no mapa como um dos poucos lugares livres de covid-19.

Mas era apenas uma questão de tempo.

“Suponho que ele (coronavírus) já estava circulando pelo país antes e receio que o que esteja por vir seja muito preocupante”, diz Conor Shapiro, diretor-geral da Health Equity International, ONG que oferece assistência médica no país, à BBC News Mundo.

“Se está sendo muito difícil para todos os países, acho que já devemos estar alarmados com o que acontecerá no Haiti”, acrescenta.

O país mais pobre

Antes da chegada do coronavírus e mesmo antes do terremoto – que fez de Porto Príncipe uma pilha de escombros, matou mais de 316 mil pessoas e deixou mais de 1,5 milhão de desabrigados – o Haiti já era havia muito tempo a nação mais pobre do Hemisfério Ocidental.

Antes do tremor, ocorrido em 2010, dois terços dos seus 10 milhões de habitantes já viviam em extrema pobreza e sem acesso à água potável. Depois do sismo, um surto de cólera que já se tornou endêmico deixou cerca de 10 mil mortos.

Agora, depois de uma década e em meio à instabilidade social que até levou a morte de policiais por militares, o país caribenho talvez esteja enfrentando um problema maior.

“Tantas pessoas vivendo em moradias superlotadas, sem água corrente ou sabão, incapazes de estocar alimentos e de comer se não trabalharem… Acho que a epidemia de cólera foi preditiva (do que pode acontecer agora): o Haiti passou por tudo o que é de ruim em sua história. O pesadelo será pior que o da Itália”, diz Brian Concannon, fundador do Instituto de Justiça e Democracia no Haiti (IJDH).

Franciscka Lucien, diretora-geral da IJDH e que trabalhou no Haiti durante a epidemia de cólera, diz que o cenário pode ser ainda pior do que em outras nações, dados os altos níveis de pobreza e falta de saúde.

“Estamos falando de um país onde a maioria da população vive bem abaixo de todos os padrões de pobreza, em uma infraestrutura que foi praticamente destruída”, diz ela à BBC News Mundo.

“Outras epidemias evidenciaram que as partes mais afetadas são aquelas onde vivem as pessoas mais vulneráveis e é por isso que o coronavírus gera grande preocupação, porque o maior número da população haitiana vive na pobreza”, ressalta.

Shapiro, por sua vez, diz que as altas taxas de desnutrição ou o alto número de pessoas imunossuprimidas, com HIV ou mesmo com tuberculose, tornam a população de risco comparativamente mais vulnerável do que na maioria das nações do mundo.

O Haiti é o país com o maior número de casos de Aids do Caribe e suas taxas de prevalência do HIV estão entre as mais altas da região. Além disso, também tem a maior incidência de tuberculose em todo o continente e 22% das crianças com menos de 6 anos sofrem de desnutrição grave.

Mas, segundo Lucien, além de tudo isso, um dos maiores perigos é que a doença se torne incontrolável em um país onde o sistema de saúde não provê o básico.

“Uma das coisas que mais me preocupa é que essa doença (covid-19) vem resultando em um colapso de sistemas de saúde em todo o mundo e, no caso do Haiti, este já não é suficiente no dia a dia”, diz ele.

Um sistema no limite

Shapiro, que coordena os esforços humanitários no Haiti há quase duas décadas, diz que, para se ter uma ideia do impacto que o coronavírus pode ter no país, basta lembrar como eram os serviços de saúde antes mesmo da chegada da pandemia.

“Até agora, receber serviços médicos tem sido muito difícil para a maioria da população. Muitas pessoas precisam viajar de uma parte do país para outra por horas até os poucos hospitais existentes para receber atendimento. Há mulheres grávidas que no momento precisam viajar de uma cidade para outra para ter uma cesariana”, diz.

Não há dados oficiais sobre o número de hospitais atualmente operando no Haiti ou o número de profissionais na área da saúde, embora, segundo a imprensa local, ambos vêm diminuindo nos últimos anos.

Um relatório de 2018 da St Luke Foundation e do Maryland Medical Center mostrou que, naquele ano, em todo o país, havia apenas 90 leitos para cuidados intensivos. O país tem 10 milhões de habitantes.

Desses, apenas 45 tinham respiradores, um dos equipamentos mais essenciais para os casos mais críticos de coronavírus.

“A assistência à saúde não é um serviço acessível. Se o coronavírus colocou em xeque o sistema de saúde dos países desenvolvidos, podemos imaginar que esta é uma situação extrema para o Haiti”, diz Shapiro.

De acordo com um estudo do Banco Mundial de 2010 (últimos dados disponíveis), o governo haitiano mal tem fundos para operar a rede de hospitais públicos da ilha e o orçamento para a saúde caiu de 16,6% em 2004 para 4,4% do PIB em pouco mais de uma década.

E desse total, segundo o relatório, quase 90% está destinado a pagar os salários dos profissionais de saúde.

O Ministério da Saúde Pública do Haiti afirma que o país está fazendo tudo ao seu alcance para conter a epidemia.

“Nenhum país estava preparado para isso e nem nós estamos. Mas tomamos medidas e ativamos um plano de contingência para tentar conter o vírus”, diz um porta-voz do órgão à BBC News Mundo.

“Fechamos as fronteiras, estamos realizando campanhas de conscientização para que as pessoas lavem as mãos, para que conheçam o vírus e tomem medidas para sua proteção”, acrescenta.

O governo haitiano anunciou no início desta semana o fechamento das fronteiras com a República Dominicana, cancelou a maioria dos voos internacionais (com exceção dos EUA) e suspendeu a maioria dos eventos sociais.

No entanto, Etant Dupain, jornalista local, diz à BBC News Mundo que, apesar do governo ter decretado estado de emergência, feiras e comércio, bases da economia informal haitiana e fonte de subsistência para milhares de pessoas, continuam a operar como de costume.

A grande incerteza

Para Shapiro, a grande preocupação com a chegada do coronavírus no Haiti transcende a pobreza, que multiplicará os contágios, ou a falta de infraestrutura sanitária, que resultará em um número terrível de mortes.

“Trabalho no Haiti desde 2003 e é a primeira vez que o país corre o risco de ser deixado sozinho em meio a uma epidemia que pode dizimar sua população”, diz ele.

“Todos os países que se lembraram do Haiti em momentos críticos estão agora tentando combater a pandemia em seus territórios, por isso tenho medo de que o Haiti tenha que enfrentar sozinho essa pandemia”, diz ele.

Além disso, lembra o especialista, que comanda o hospital St Boniface, no sul do Haiti, há anos as instalações médicas foram mantidas a duras penas só por meio de ajuda internacional.

“Agora, estamos preocupados com o fato de podermos continuar recebendo o suporte externo e os suprimentos médicos de que precisamos, não apenas para covid-19, mas para continuar mantendo os serviços que pudemos oferecer até agora”, acrescenta.

“Não podemos minimizar as circunstâncias. O Haiti enfrenta um desafio nunca visto antes”, conclui.

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