A recessão que o Brasil atravessou entre 2015 e 2016 afetou ricos e pobres, mas passados três anos desde o fim da ‘pior crise do século’, como foi batizada à época, fica claro que os efeitos deletérios desse perÃodo foram diferentes para os dois grupos. Os brasileiros mais abastados já viraram a página das vacas magras. Os pobres, ainda não. Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas revela que depois da tempestade, os 10% mais ricos já acumulam um aumento de 3,3% de renda do trabalho, ou seja, além de superar as perdas, já ganham mais que antes da recessão. Enquanto isso, os brasileiros mais vulneráveis amargam uma queda de mais de 20% da renda acumulada. Se somarmos os últimos sete anos, a renda do estrato mais rico aumentou 8,5% e a dos mais pobres caiu 14%.
A depressão econômica e a tÃmida recuperação que se seguiu pegou em cheio famÃlias como a de Gilvan Alves dos Santos, de 44 anos. Assistente de logÃstica de uma empresa há 17 anos, ele viu seu salário se transformar na única renda fixa de uma famÃlia de seis pessoas. Três dos seus quatro filhos estão desempregados (a caçula de 15 anos é estudante do ensino médio) e a mulher que trabalhava como estoquista foi demitida. Hoje sua parceira estuda fotografia. Para completar a situação financeira complicada, Santos não conseguiu durante muito tempo pagar um empréstimo e se viu enrolado numa dÃvida de 10.000 reais. Após renegociar com o banco, logrou pagar um décimo do que devia, e saiu das estatÃsticas da inadimplência. Uma das filhas também tem ajudado com a renda da casa fazendo bicos de babá. “A situação na famÃlia apertou e a renda per capita diminui muitoâ€, lamenta. Com o orçamento apertado, a famÃlia de Santos engrossou o grupo dos 50% mais pobres – contabilizando menos de 754 reais por pessoa.
Diferentemente de Santos, Elisa Guimarães Figueiredo, de 33 anos, que também trabalha com logÃstica seguiu um caminho de crescimento nos últimos anos mantendo-se no estrato mais rico da sociedade. “A crise, na verdade, foi uma oportunidadeâ€, conta. Como trabalhava no setor de ferrovia e, depois em um porto, ela abriu mercado oferecendo soluções de redução de custos a pessoas que utilizavam o transporte rodoviário. Entre 2015 e 2017, ela conseguiu dobrar o salário e hoje se tornou consultora de logÃstica em uma importante consultoria global.
O retrocesso de Gilvan e o crescimento de Elisa são os dois lados da moeda da economia brasileira. A retomada da atividade brasileira é bastante desigual entre os trabalhadores. Segundo o levantamento do Ibre/FGV, as oscilações na relação entre a renda média do trabalho dos 10% mais ricos e dos 40% mais pobres mostram que, desde 2015, essa desigualdade vem crescendo, e atingiu em março o maior patamar desde 2012, quando começou a ser feita uma série histórica sobre o assunto. O indicador utilizado pelo levantamento é o Ãndice de Gini, que monitora a desigualdade de renda em uma escala de 0 a 1 – sendo que, quanto mais perto do 1, maior é a desigualdade. O Brasil atingiu o valor de 0,6257 em março.
Para o pesquisador Daniel Duque, os mais pobres sentem muito mais o impacto da crise pela vulnerabilidade social e pela dinâmica do mercado de trabalho. “Há menos empresas contratando e demandando trabalho, ao passo que há mais pessoas procurando. Essa dinâmica reforça a posição social relativa de cada um. Quem tem mais experiência e anos de escolaridade acaba se saindo melhor do que quem não temâ€, disse o pesquisador em nota.
Na avaliação do Marcelo Medeiros, vinculado à Universidade de Princeton nos Estados Unidos, a recuperação até agora quase não gera empregos e praticamente só favorece os trabalhadores de renda mais alta. “Os mais pobres estão sendo deixados para trásâ€, diz.
Medeiros começou a estudar de que forma as oscilações macroeconômicas afetaram a desigualdade de renda do trabalho que cresceu nos últimos anos. Junto com Rogério Barbosa, pesquisador visitante da Universidade Columbia, Medeiros detectou que, entre 2014 e 2015, há uma interrupção da queda da desigualdade. “Em boa medida o desemprego é o carro chefe da tendência de aumento da desigualdade recente. Em questão de um ano e meio, o trabalho distributivo passa a ser desfeito na mesma velocidade em que ele tinha sido feito”, explica Barbosa. Ele conta que nos anos 2000, o Ãndice Gini caÃa 7 pontos ao ano, justamente quando o paÃs vivia um boom de empregos.
A desigualdade se acentua em 2016, com a renda menor entre os trabalhadores. “A partir daà temos um aumento de 20 pontos no Gini devido à desigualdade dentro do mercado, instabilidade, e insegurança para quem sobreviveu”, diz. No fim de março, 13,4 milhões de pessoas estavam desempregadas no Brasil, segundo dados do IBGE.
Analisando a série dessazonalizada, é possÃvel observar que, em meados de 2014, os 50% mais pobres se apropriavam de 5,74% de toda renda efetiva do trabalho. No primeiro trimestre de 2019, a fração cai para 3,5%. Para esse grupo que controla uma quantia pequena do montante existente, essa redução de apenas 2.24 pontos percentuais representa, em termos relativos, uma queda de quase 40%.
Enquanto isso, o grupo dos 10% mais ricos da população, na metade de 2014, recebia cerca de 49% do total da renda do trabalho – e vinha apresentando redução nessa parcela, ao longo dos anos anteriores. No inÃcio de 2019, sua fração chega a 52%. Para Barbosa, a desigualdade de renda aumenta por dois motivos nos últimos ano. Primeiro, porque muitas das pessoas que conseguem reingressar no mercado vão para o setor informal e inseguro, portanto preocupados em reduzir gastos, inibindo a circulação de dinheiro na economia. E, por outro lado, as pessoas que ficaram no setor formal têm colocações melhores, e, eventualmente, chegam a melhorar seus ganhos. ” Desigualdade não é apenas ganhar ou perder, é ganhar mais rápido. Se alguém se distancia do restante da população, aumenta a desigualdade. O topo do mercado formal está se distanciando da base de forma muito rápida, algo que não vÃamos desde o começo de 1990″, explica Barbosa.