A Itália sentiu na pele as consequências de tratar a pandemia de coronavírus como se fosse uma “gripezinha”, como diz frequentemente o presidente Jair Bolsonaro. Em 28 de fevereiro deste ano, quando o país registrava 17 mortes pela Covid-19, prefeitos e governos regionais começaram a tomar uma série de medidas preventivas para proteger a população, tais como o fechamento de escolas e a proibição de aglomerações públicas. Algumas destas cidades ainda não haviam registrado casos da doença, e buscavam se antecipar ao pior. À época, apenas 11 regiões da Lombardia e Vêneto (ambas no norte), com uma população total de 50.000 pessoas, haviam sido isoladas pelo Governo —localidades onde o vírus, atualmente, foi praticamente contido.
Preocupado com a repercussão negativa destas medidas no turismo e na debilitada economia do país, o primeiro-ministro Giuseppe Conte agiu para contestar estas decisões, que segundo ele contribuíam “para gerar o caos”. O premiê conseguiu derrubar na Justiça várias destas normas locais, como o fechamento dos bares na Lombardia durante a noite, escreveu à época a repórter Lorena Pacho, correspondente do EL PAÍS em Roma. Blindar a Lombardia, cuja capital, Milão, é o principal motor econômico do país, com cerca de um quinto do PIB nacional, era a decisão que ninguém queria tomar.
Em um esforço de manter o fluxo turístico e as receitas entrando, o ministro de Relações Exteriores, Luigi di Maio, chegou a criticar a decisão de alguns países, como Israel e Rússia, que haviam pedido a seus cidadãos que evitassem viagens à Itália. “Nossos filhos vão à escola na maioria das nossas cidades, e os turistas e investidores podem vir com tranquilidade”, afirmou em fevereiro, já com a crise em andamento. O chanceler também elogiou a política de testes no país: “Não podemos ser culpados de termos sido um dos países que mais fizeram controles [e consequentemente identificou mais casos]”. O ministro da Saúde, Roberto Speranza, e o diretor do hospital Spallanzani de Roma Giuseppe Ippolito, também entraram em campanha otimista, destacando em entrevista coletiva que 45 pessoas já haviam se curado da infecção pela Covid-19. “A Itália não é o foco de contágio, o vírus está circulando em todo o mundo”, disse Walter Ricciardi, membro da Organização Mundial da Saúde e assessor do ministro da Saúde.
As consequências desta política de desestimular o isolamento social e a quarentena voluntária logo se revelou desastrosa. Três dias após as manobras e declarações do premiê Conte para manter o clima de normalidade em meio à pandemia o número de mortos dobrou: em 1º março, a Itália tinha 34 mortos. O balanço de vítimas fatais continuou a crescer exponencialmente, com 79 mortes em 3 de março. E o número seguiu subindo, até tornar o país em recordista de óbitos por Covid-19 no mundo, com 7.503 vítimas anunciadas nesta quarta-feira, à frente da China, epicentro da doença no mundo.
As autoridades italianas tentaram retomar uma política de quarentena e isolamento em 9 de março, quando o número de mortos chegou a 463. Diante de uma emergência epidemiológica sem precedentes, Conte anunciou que todo o país ficaria em situação de isolamento, algo que já estava ocorrendo em maior ou menor escala na Lombardia, no norte do país, e em outras 14 províncias. “Estamos ficando sem tempo”, disse o primeiro-ministro, ao anunciar que o lema a transmitir aos cidadãos é “eu fico em casa”. “É a pior crise que vivemos desde o final da Segunda Guerra Mundial”, resumiu, quando decretou o fechamento de todas as fábricas e atividades produtivas que não sejam imprescindíveis para o funcionamento do país.
A autocrítica veio de quem viu na prática os impactos da doença na população mais vulnerável. “Acho que durante todo esse tempo subestimamos a gravidade da situação”, contou por telefone Michele Lafrancesco, atendente em uma residência de idosos de Monza-Brianza, a 30 quilômetros de Milão, a repórteres do EL PAÍS.
Apesar de ter particularidade climáticas e sociais diferentes da Itália, o Brasil enfrenta uma situação semelhante, apesar de estar em outro estágio da evolução da pandemia, com 57 mortos pela doença segundo dados desta quarta-feira. O presidente Bolsonaro tem se esforçado para —contrariando a Organização Mundial de Saúde e recomendações iniciais de seu próprio Ministério da Saúde—minimizar a crise para evitar que a situação econômica se deteriore ainda mais. Ele chegou a criticar medidas “alarmistas” de alguns governadores do país e o fechamento de escolas, o que gerou um grave conflito com os políticos regionais. Os chefes dos Executivos estaduais e municipais, que lutam para conter o ímpeto do contágio e evitar a saturação do Sistema Único de Saúde, determinaram, em alguns casos, o fechamento de todos os estabelecimentos não essenciais, como foi feito por João Doria em São Paulo, o principal foco da doença no país.