O mundo deve à s crianças alguns gestos que lhes foram subtraÃdos. Gestos corporais, gestos de linguagem. Já não é o caso de sentir-nos satisfeitos com a não interrupção. Existe alguma coisa a mais: distender, demorar e alongar o tempo das crianças. Se houvesse que dizê-lo numa única frase: a tarefa de estar entre crianças consiste em fazer durar a infância todo o tempo que for possÃvel. (Carlos Skliar)
Enquanto professora e pesquisadora, assumo o espaço da creche como Nietzsche afirma o mundo, “um imenso laboratório de vivências ou experiênciasâ€[1]. Onde para mim, enquanto o ditado corrente diz que “as paredes tem ouvidos†parafraseio, assumindo que “as paredes falamâ€, entendo assim que todos que habitam este espaço o movimentam, fazendo que pelos seus corredores pulsem histórias; pulsem vivências, algumas prazerosas, e outras não, em um misto de descoberta e superação. Neste contexto relato a experiência de minha menina que me transpassa se tornando minha também.
Treze de fevereiro de 2019, Ester acorda quando a chamo e diz “vou dormir mais mamãeâ€, lembro que vamos para creche então ela se senta e pede entusiasmada “mamar com chocolate no copinhoâ€; após atendida, fala satisfeita: “já encheu barrigaâ€, para confirmar levanta a blusa e mostra a barriguinha.
Após todo o ritual matinal ela pega sua mochila e seguimos para a creche. Empolgada, me dá um beijo na entrada e pergunta se eu volto mais tarde, digo que sim e lhe abraço para que se tranquilize, então ela se vira para a porta, ocorre que a porta está fechada e ouço choros lá dentro; então me aproximo, abro o portãozinho de segurança feito em madeira com uma pequena tramela, seguido pela abertura da porta e ela vai entrando.
Essa não é a sua primeira vez na creche, o lugar para ela não é estranho, mas como afirma Azevedo “o que nos parece familiar não é necessariamente conhecidoâ€[2]. A porta se abre e vejo que a professora tenta tranquilizar um garoto que chora, enquanto a apoio de sala conversa com outro garoto que parece querer sair pela porta aberta (aparentemente os pais acabaram de sair); à s demais crianças se encontram pela sala explorando o espaço. Essa cena me remeteu a Nietzsche que “sustenta que as vivências têm inscrição no corpo […] não pode ter caráter universal; elas são sempre singulares.[3] Cada criança é singular e vivencia o que lhes acontece de formas diversas.
Fecho o pequeno portão e me preparo para ir embora; Ester, parada, olha ao redor procurando um rosto conhecido, porém, sua antiga turminha está na sala ao lado e as professoras são outras. Passados alguns segundos ela não reconhece ninguém e já se vira um tanto assustada “mamãe não quero ficarâ€; nesse pequeno espaço de tempo, entre meu espanto e o choro iminente dela, a auxiliar já se encontra do lado da porta, faz sinal para mim e diz algo para acalmá-la, geralmente é “mamãe logo voltaâ€, mas no momento não ouvi com clareza; a porta se fecha e ouço seu choro que conheço bem, me viro e sigo em direção ao portão.
No caminho de volta para casa começo a lembrar e a pensar sobre alguns dos meus conselhos de mãe e de professora, não tenha medo/ seja corajosa/ não precisa chorar/ seja forte. Ah se ela me visse agora, se meus antigos alunos me vissem agora, chorando enquanto escrevo, e então agora, neste dia em que juntas vivemos essa experiência eu entendi, às vezes temos medo e choramos ainda assim podemos ser corajosas e fortes. Então movida por minhas questões de pesquisadora, que busca entender a infância eu pergunto: o que temos feito com nossas crianças? Pedindo que sejam fortes? Afirmando que já são grandinhos ou pequenos demais para determinadas coisas?
O tempo da criança não é o mesmo que o nosso “é uma possibilidade de vida sem amarras da rede disciplinar que nos atinge a cada dia, pode nos trazer momentos de risos, ao vermos o quanto criamos barreiras para enxergar a leveza do mundo que nos cercaâ€[4]. Assim como a pesquisa que venho realizando, este texto é um convite a mudarmos as lentes com as quais olhamos nossas crianças, elas são potência afirmativa e criadora.
Nossas crianças ficarão bem; enquanto termino este relato a minha menina já está tomando seu café da manhã e sorrindo; sim, ela está bem, suas filhas e filhos estão bem, mas, e quanto a mim? E quanto a nós? Bem, eu já não tenho tantas certezas…
Por Eliane de Jesus – Mestranda no PPGE/UFMT, especialista em metodologias de ensino pela UFG e professora no municÃpio de Porto dos Gaúchos.
Referências
AZEVEDO, Joanir Gomes de. A tessitura do conhecimento em redes. In: ____. OLIVEIRA, Inês Barbosa de; ALVES, Nilda (orgs.). Pesquisanos/dos/com os cotidianos das escolas – sobre redes e saberes. Petrópolis: DP et Alii, 2008. p.65-78.
MALDONADO, Maritza Maciel Castrillon. Espaço Pantaneiro: cenário de subjetivação da criança ribeirinha. (Tese de Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2009.
MARTON, Scarlett [editora responsável]. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016. (Sendas e Veredas) Apoio: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche.
SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: Educar. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção Educação: Experiência e Sentido). Tradução de Giane Lessa.
[1] Dicionário Nietzsche, 2016.
[2] Azevedo, 2008.
[3] Dicionário Nietzsche, op. cit.
[4] Maldonado (2009, p. 17-18).