Home Artigo-Opinião Vivências infantis; O primeiro dia na creche. Por Eliane de Jesus

Vivências infantis; O primeiro dia na creche. Por Eliane de Jesus

10 min ler
0

O mundo deve às crianças alguns gestos que lhes foram subtraídos. Gestos corporais, gestos de linguagem. Já não é o caso de sentir-nos satisfeitos com a não interrupção. Existe alguma coisa a mais: distender, demorar e alongar o tempo das crianças. Se houvesse que dizê-lo numa única frase: a tarefa de estar entre crianças consiste em fazer durar a infância todo o tempo que for possível. (Carlos Skliar)

Enquanto professora e pesquisadora, assumo o espaço da creche como Nietzsche afirma o mundo, “um imenso laboratório de vivências ou experiências”[1]. Onde para mim, enquanto o ditado corrente diz que “as paredes tem ouvidos” parafraseio, assumindo que “as paredes falam”, entendo assim que todos que habitam este espaço o movimentam, fazendo que pelos seus corredores pulsem histórias; pulsem vivências, algumas prazerosas, e outras não, em um misto de descoberta e superação. Neste contexto relato a experiência de minha menina que me transpassa se tornando minha também.

Treze de fevereiro de 2019, Ester acorda quando a chamo e diz “vou dormir mais mamãe”, lembro que vamos para creche então ela se senta e pede entusiasmada “mamar com chocolate no copinho”; após atendida, fala satisfeita: “já encheu barriga”, para confirmar levanta a blusa e mostra a barriguinha.

Após todo o ritual matinal ela pega sua mochila e seguimos para a creche. Empolgada, me dá um beijo na entrada e pergunta se eu volto mais tarde, digo que sim e lhe abraço para que se tranquilize, então ela se vira para a porta, ocorre que a porta está fechada e ouço choros lá dentro; então me aproximo, abro o portãozinho de segurança feito em madeira com uma pequena tramela, seguido pela abertura da porta e ela vai entrando.

Essa não é a sua primeira vez na creche, o lugar para ela não é estranho, mas como afirma Azevedo “o que nos parece familiar não é necessariamente conhecido”[2]. A porta se abre e vejo que a professora tenta tranquilizar um garoto que chora, enquanto a apoio de sala conversa com outro garoto que parece querer sair pela porta aberta (aparentemente os pais acabaram de sair); às demais crianças se encontram pela sala explorando o espaço. Essa cena me remeteu a Nietzsche que “sustenta que as vivências têm inscrição no corpo […] não pode ter caráter universal; elas são sempre singulares.[3] Cada criança é singular e vivencia o que lhes acontece de formas diversas.

Fecho o pequeno portão e me preparo para ir embora; Ester, parada, olha ao redor procurando um rosto conhecido, porém, sua antiga turminha está na sala ao lado e as professoras são outras. Passados alguns segundos ela não reconhece ninguém e já se vira um tanto assustada “mamãe não quero ficar”; nesse pequeno espaço de tempo, entre meu espanto e o choro iminente dela, a auxiliar já se encontra do lado da porta, faz sinal para mim e diz algo para acalmá-la, geralmente é “mamãe logo volta”, mas no momento não ouvi com clareza; a porta se fecha e ouço seu choro que conheço bem, me viro e sigo em direção ao portão.

No caminho de volta para casa começo a lembrar e a pensar sobre alguns dos meus conselhos de mãe e de professora, não tenha medo/ seja corajosa/ não precisa chorar/ seja forte. Ah se ela me visse agora, se meus antigos alunos me vissem agora, chorando enquanto escrevo, e então agora, neste dia em que juntas vivemos essa experiência eu entendi, às vezes temos medo e choramos ainda assim podemos ser corajosas e fortes. Então movida por minhas questões de pesquisadora, que busca entender a infância eu pergunto: o que temos feito com nossas crianças? Pedindo que sejam fortes? Afirmando que já são grandinhos ou pequenos demais para determinadas coisas?

O tempo da criança não é o mesmo que o nosso “é uma possibilidade de vida sem amarras da rede disciplinar que nos atinge a cada dia, pode nos trazer momentos de risos, ao vermos o quanto criamos barreiras para enxergar a leveza do mundo que nos cerca”[4]. Assim como a pesquisa que venho realizando, este texto é um convite a mudarmos as lentes com as quais olhamos nossas crianças, elas são potência afirmativa e criadora.

Nossas crianças ficarão bem; enquanto termino este relato a minha menina já está tomando seu café da manhã e sorrindo; sim, ela está bem, suas filhas e filhos estão bem, mas, e quanto a mim? E quanto a nós? Bem, eu já não tenho tantas certezas…

Por Eliane de Jesus – Mestranda no PPGE/UFMT, especialista em metodologias de ensino pela UFG e professora no município de Porto dos Gaúchos.

Referências

AZEVEDO, Joanir Gomes de. A tessitura do conhecimento em redes. In: ____. OLIVEIRA, Inês Barbosa de; ALVES, Nilda (orgs.). Pesquisanos/dos/com os cotidianos das escolas – sobre redes e saberes. Petrópolis: DP et Alii, 2008. p.65-78.

MALDONADO, Maritza Maciel Castrillon. Espaço Pantaneiro: cenário de subjetivação da criança ribeirinha. (Tese de Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2009.

MARTON, Scarlett [editora responsável]. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016. (Sendas e Veredas) Apoio: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche.

SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: Educar. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção Educação: Experiência e Sentido). Tradução de Giane Lessa.

[1] Dicionário Nietzsche, 2016.

[2] Azevedo, 2008.

[3] Dicionário Nietzsche, op. cit.

[4] Maldonado (2009, p. 17-18).

Carregue mais postagens relacionados
Carregue mais por Porto Notícias
Carregue mais em Artigo-Opinião
Comentários estão fechados.

Verifique também

Mulher procura pelo irmão João Ferreira Azevedo que segundo informações pode morar em Porto dos Gaúchos

Eva Ferreira Azevedo que mora em Cuiabá, entrou em contato com a redação pedindo ajuda par…