Entre 1867 e 1868, uma violenta epidemia de varíola se abateu sobre Cuiabá provocando medo e morte. Segundo a historiadora Else Calvacante, cerca de 4 mil pessoas morreram vítimas da doença na Capital naquele período, o que representa mais de um terço da população, que era de 13 mil.
Mais de 150 anos depois, uma nova epidemia volta a provocar temor na população. O novo coronavírus já contaminou mais de 100 pessoas na Capital e matou uma, sem sequer ter atingido o pico.
Em entrevista ao MidiaNews, Else revelou que, diferente da época da epidemia da varíola, hoje a população tem mais informações a respeito dos métodos de prevenção ao novo coronavírus, o que, segundo ela, pode ajudar na diminuição do contágio.
A historiadora lembrou que a varíola chegou em Cuiabá através de soldados que lutavam na guerra do Paraguaia, em Corumbá. Conforme ela, o diagnóstico tardio provocou a proliferação da doença.
A varíola é uma doença infectocontagiosa provocada pelo vírus Orthopoxvirus variolae, da família Poxiviridae. Além de sintomas semelhantes aos da gripe, os pacientes também apresentam irritação na pele que aparece primeiro no rosto, nas mãos e nos antebraços e, posteriormente, no tronco. O vírus foi erradicado mundialmente por volta dos anos 1970 após uma campanha de imunização global sem precedentes organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Cuiabá era a Capital da província de Mato Grosso e era o único lugar que tinha hospitais, inclusive o nosso principal hospital era a Santa Casa, no mesmo lugar que é hoje. Então, esses soldados chegam passando mal e são internados na Santa Casa. Mas como os médicos não conseguiram perceber que era a varíola, eles não ficaram isolados”, disse.
“Os médicos só descobriram que os soldados estavam com a varíola depois que eles morreram, mas aí já era tarde demais. Não houve tempo de isolamento, cordões sanitárias, nada”, acrescentou.
De acordo com Else, a única atitude mais rápida foi proibir o enterro no Cemitério da Piedade, que havia sido recentemente inaugurado, e mandado construir um cemitério especial para as vítimas de varíola, o Cae Cae, que oficialmente se chama Nossa Senhora do Carmo.
“Nas narrativas de Joaquim Murtinho, que escreve sobre a doença, ele afirma que as pessoas não seguiam os enterros, não iam aos velórios, pois os mortos eram enterrados em vala comum no Cemitério do Cae Cae”, disse.
“E ele mesmo perdeu um filho, vítima de varíola, e, quando tudo passou, ele foi ao cemitério rezar no túmulo do filho, mas constatou que era impossível, pois não havia identificação dos mortos”, acrescentou.
Número de óbitos
Conforme a historiadora, não existem dados exatos de quantas pessoas morreram de varíola em Cuiabá porque os atestados de óbito naquela época eram feitos pela Igreja Católica e, fatalmente, o padre que anotava as mortes por varíola também faleceu com a doença.
“Esse surto durou praticamente um ano. Naquela época não era como hoje, eram os padres que faziam os atestados de óbito. E o padre que anotava os casos de varíola em Cuiabá anotou apenas durante seis meses, porque depois ele contraiu a doença e acabou falecendo. Então, nós não temos uma estimativa real e exata da quantidade de mortes. O que nós temos é que aproximadamente morreram 4 mil pessoas em Cuiabá por causa da epidemia”, contou.
“Há também suspeita de que não era interessante para o Governo mandar um relatório médico para Dom Pedro II, que era o imperador do Brasil, a respeito da real situação. Houve talvez a possibilidade de esconder com exatidão esses números porque pegaria muito mal, mostraria ao imperador que a autoridade política não foi capaz de fazer uma excelente gestão para evitar o contágio da doença”, acrescentou.
Castigo de Deus
Segundo Else, naquela época, muitas pessoas acreditavam que a epidemia da varíola era um castigo, uma punição de Deus.
Ainda conforme ela, a Igreja Católica fomentava esse pensamento e muitas pessoas chegaram a ser contaminadas em procissões religiosas.
Diferente do novo coronavirus, quando a doença chegou em Cuiabá, de acordo com a historiadora, já havia vacina, mas as pessoas se recusavam a tomar.
“É muito parecido com a situação da Covid-19. Os médicos pedem o isolamento porque o sistema de saúde não tem capacidade de atender todo mundo, mas tem pessoas que negam a doença, enfim. Naquela época, muitas pessoas não tomavam vacina, porque no imaginário delas, se tomassem, iriam morrer ou ia aparecer um chifre, um rabo no corpo delas. Então, como hoje, as pessoas constroem um imaginário a respeito da doença”, afirmou.
Impactos econômicos
Naquela época, Cuiabá já estava afetada economicamente com o fechamento do Porto de Corumbá, por conta da guerra do Paraguai.
E, por isso, segundo a historiadora, é difícil saber se a doença ajudou ou não a aumentar esse impacto.
“Economicamente nós já tínhamos um impacto trazido pela guerra, porque quando as tropas invadiram Corumbá, a cidade era o principal porto de Mato Grosso. Então, toda mercadoria que chegava e saía era por meio do transporte fluvial. Quando houve esse bloqueio, nós tivemos carência de alimentos”, disse.
“Mas o que abastecia Cuiabá? O que abastecia Cuiabá eram os produtos de subsistência que havia nas margens do rio. Mas houve realmente uma precariedade na economia naquela época e tudo só volta ao normal no final da guerra. Não foi nem a doença. Quando terminou a guerra, que veio a reabertura da bacia platina, aí mais do que nunca, a gente começa a exportar produtos extrativista vegetais”, acrescentou.
Mudanças de hábitos
Mesmo com a epidemia, a população cuiabana não adotou medidas de higienização, por exemplo, para evitar o contágio da varíola e de outros vírus.
Essa mudança só ocorreu anos depois, com a chegada de médicos europeus a Cuiabá.
A historiadora contou que naquela época, outras epidemias atingiam o País e, por isso, foi preciso adotar medidas sanitárias urgentes para que as pessoas não morressem e, consequentemente, não houvesse impactos na economia.
“Havia uma preocupação do poder público, em especial, com relação a limpeza do córrego da Prainha, porque o córrego da Prainha era responsável também por grande parte do abastecimento da cidade. Então não podia lavar roupa, urinar dentro do córrego”, disse.
“Com o avanço médico, o poder público atende as indicações dos médicos de cuidar da saúde da população. Porque como você sustenta o capitalismo sem pessoas? O capitalismo precisa de mão de obra. Um homem doente não trabalha e onera o Estado. O homem doente que morre também onera porque o Estado vai ter que pagar pensão para a família”, afirmou.
Para a historiadora, conhecer o passado é primordial para enfrentar a pandemia do novo coronavírus.
“A população desconhece o passado. A História, na verdade, é uma disciplina de segundo plano no nosso sistema de ensino. Se as pessoas tivessem essa leitura, essa dimensão, do que representa uma pandemia que nós estamos vivendo hoje, elas, com certeza, seguiriam com mais efetividade as recomendações de isolamento social, por exemplo, uma vez que nós ainda não temos um remédio, uma vacina”, disse.
“A projeção de um remédio, de uma vacina, demanda tempo, demanda ciência e ciência tem que ser feita com responsabilidade. Não pode pegar qualquer remédio e enfiar na pessoa. Então, o que é necessário agora? Que a população pense no coletivo”, pontuou.